A SENHORA LENS (Ricardo de Almeida Rocha)

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estou entre os que não atiram flores ao galante toureiro antes lamentam o animal assassinado

Tuesday, April 04, 2006

A Senhora Lens livrar-se-ia da depressão por esse amor. A partir do amor saberia a perniciosidade de depender do amor para se libertar. Ao vê-lo diante da pousada, graças a um itinerário confuso e resoluto como certos textos, que desviaria o ônibus em sinuosidades de caminho, enquanto ela, com poucos passos pela areia, chegava ao mesmo lugar ao mesmo tempo, soube que era êle. Ou não seria ninguém. Sonho e realidade tendo o mesmo peso. O equilíbrio entre o deslumbre perante um rosto e a atração de um corpo, e maravilhar-se com a doçura de olhos infantis e gestos benévolos desse ente raro, o homem gentil.

A temporada, portanto, dividia a vila de Celbba: a do verão cosmopolita, e a do resto do ano, provinciana. Por volta do Natal, com fortuitas tempestades eletrificadas, da exposição desses dois períodos aos dias de sol, nascia um corpo social rústico e rico, feito de pecuaristas e suas famílias em férias juntando-se aos moradores anuais, pescadores, comerciantes e a gente a ele ligada, além dos inevitáveis especuladores, obedientes a leis tão imutáveis quanto aquelas que definem, na semelhança entre pais e filhos, o gene.

Gerard chegou em novembro, quando a cidadezinha apenas ensaiava a temporada, mas pôde sentir logo as duas faces da vila. O feriadão trouxera turistas em número considerável.

Quando se faz a curva, vislumbra-se a vila. O sol se põe a noroeste nessa época do ano, por detrás da cordilheira verdejante. O vento sopra geralmente numa só direção, terral, em rajadas fortes, todas as tardes. O mar é raso durante imenso trecho -- quase dá para se chegar às ilhas sem nadar --, transparente. O branco corte litorâneo começa e termina em choupanas. Um rio corre ruidoso ladeando a rua interna paralela à beira-mar. No extremo-sul, repousam as águas azuis da Lagoa do Trancoso. Assim viu Gerard desvendar-se Celbba à sua frente. Na quarta-feira anterior abandonara-se ao prazer de se desfazer de todos os seus laços e hábitos da cidade grande. Chegou na quinta. Estabeleceu-se no seu apartamento da pousada. O computador ficara no canto esquerdo junto à parede da janela: a impressora e o fax, numa mesa menor de fórmica. Já conectado ao seu trabalho, fazendo de novo parte dos milhões de navegantes da grande rede no planeta,Gerard devaneou. Durante todo o período do crepúsculo que não incluiu sua ida ao lugar onde tivera a visão da mulher, a expectativa devorou-o -- contemplava o oceano, trilha sonora do vilarejo, o fundo musical da nova vida que pretendia -- - barulho do mar, o mesmo de sempre som perene e absoluto, independente dos ouvidos. Mas dele os ouvidos se apropriam para associações que indicam a transitoriedade humana, à força do contraste com a perpetuidade do mar.

A imagem da mulher na praia o envolvia.

Não seria a primeira obsessão amorosa em sua vida, mas se partisse de um desejo essencial, se fosse o canto da verdade esquecida que buscava, certamente -- pensou -- seria a última. Na qualidade de obsessão se desfaria para abrir espaço a um amor autêntico, que o entregasse, homem, a uma mulher, sentenciando-o a amar, quando amasse não mais a si mesmo refletido na pessoa de seu amor, mas essa mesma pessoa. E ao mundo indiretamente.

O primeiro dia de Gerard em Celbba, na realidade um final de dia, transcorreu em paz. A vila se resumiu inicialmente na vista de sua janela na pousada; depois em sua inserção naquela vista, quando descem à praia para nadar até os recifes (ao voltar de onde tivera a visão), deixando no quarto, antes vazio, o halo de sua presença. No mar, Gerard viu-se diante da prateação que ia de sua mão esquerda, quando era levada à frente, ao horizonte. O sol, responsável por aquele reflexo de mistérios que unem o Homem ao Infinito derramava-se obliquamente sobre a vila matiza as vidraças dos pequenos prédios defronte ao mar. Sua luz infiltrava-se pela primeira transversal de sul para norte no calçadão da praia. Mulheres e suas filhas respiravam artesanato de conchas, furando os búzios com alicate-de-unha e colocando-os no fio de pesca enquanto enchiam a conversa de maledicência para equilibrar a desgastante tarefa. Os raios seguiam até a Fonte Sarracena diamantizando o jorro d'água, seguindo até a lateral da igreja,plúmbea, rachada e cheirando a urina de festeiros ímpios. No chão havia pedaços velhos e verde-mofo de orçaz, maços amassados e guimbas de cigarro, seringas e, ocultas pela parede triste, as lágrimas do padre aidético. Vira na televisão o noticiário local divulgar pesquisa que dava Celbba como o maior índice de incidência de contaminação pelo vírus.Rapidamente a tarde esmaecia. Esticavam-se as sombras de pessoas e prédios. Na vermelhidão do céu, a fachada dos correios. Nos "orelhões" à entrada do posto telefônico, a sublimidade do entardecer inspirava os jovens turistas. Haviam acabado de chegar e ligavam para suas famílias. Transmitiam aos parentes mais que informações, revelações. Uma estrela desponta; depois outra. E mais uma. À noite descia sobre a praça do cemitério. Histórias de amor e morte se congregavam na quietude entre as lápides. No recém inaugurado shopping, as luzes mais fortes dos corredores acendiam-se no burburinho dos que chegaram na vila para enforcar o dia de trabalho entre o feriado e o final de semana. Gerard só sentiria essa população flutuante de Celbba no dia seguinte. Agora, acabava de tomar banho após nadar e sentara-se diante do computador.

Relacionava a forma esplendorosa das coisas da vida com uma demasiada objetiva maneira de as descrever. Se isso o incomodava, às internautas encantava.

Diferentemente de ao vivo, relacionar-se com as mulheres assim não era como jogar pedras no lago e ficar observando os círculos na água se multiplicarem até desaparecer. Criava a expectativa do que não usufruia.Um lago,beira de um lago, colinas em torno de um lago, sol por detrás das colinas.

A internet era a revolução que Gerard sempre pedira a Deus. Incomodava-se com as transformações sociais projetadas por utopias. A rede era uma realidade. Não que fosse um nerd, longe disso. Impunha-se limites rigorosos no uso do computador. Mas era sublime relacionar-se com pessoas no mundo inteiro sem sair do quarto. Namorar, ficar, flertar, sem ser pressionado (demais) pelas aflições do desejo; exercitar sua literatura com a ambição primária dos escritores: edição e público. Era-lhe bastante seu micro devidamente configurado, o modem conectado, e a senha. Não pretendia ficar 150 horas mensais de sua existência - de resto já virando a faixa dos vinte e cinco anos - indo na tela a museus, hotéis, pubs, conhecer o guarda-roupa da atriz famosa, ver o banho da modelo escultural ou ouvir o belíssimo hino da Patanzânia. A vida é curta, mesmo para um nauta da Rede. Mas conhecer quem jamais conheceria senão assim, e instantâneamente, era tempo decerto ganho.

Queria resgatar-se. Remir o tempo em que a timidez impediu as delícias de um namorico. Seu prazer literário recente era devorar um livro à hora do almoço na biblioteca. Agora tomara gosto pela prosa em que podia tornar-se a fala espontânea de alguem. Como seu próprio médico, examinar o corpo da prosa, diagnosticar e administrar tratamento. Quanto às aflições do desejo, se não podia ver uma saia, descobriu que um pensamento digitado por uma mulher carregava tremendo potencial de sensualidade. Quando já se definia como um pervertido, Deus lhe apareceu nas entrelinhas de um correio eletrônico, como já se revelara em olhos cristalinos, bocas entreabertas, ombros cheios e brilhantes, fartas ancas firmes.

A epifania não tem hora nem lugar, acontece de vez em quando. Mas não restringe-se. Não sempre. Às vezes. Sempre, não o suportaria o ser humano.

Não sem algum desconforto, começa a digitar. O contato se faz. Uma velha correspondente, nunca a havia visto. Uma amiga virtual. Médica. Ao menos se dizia.

O prazer da correspondência eletrônica estava proporcionalmente ligado às descobertas de Gerard feitas em alguma impressão da Beleza. Difícil a vida colocá-las num cotidiano. Mas era possível vive-las eventualmente, e bom que ao vive-las se pudesse partilhar a vida. Era bom ter amigos, melhor sem as sublimes dificuldades da presença. De uma maneira ou de outra, eram raros. A terra seca anseia a chuva. Se não há no cérebro humano uma peculiaridade superior de que careçam os animais, em sua alma mora um recôndito sagrado de onde se parte para a glória, ou para a perdição. Essa raridade, quase epifania, sensual (mas não carnal), que o córtex retém de longe em longe, árias numa cantata, fazia tempo não a experimentava Gerard. Seu desejo de mulheres transpusera a fronteira. O instinto sexual ou o prazer estético ou as horas da noite que a solidão rejeita. Gerard, um mundo no mundo, o espiritualizado amante de Deus,ao menor sinal da beleza sensual, traia seu grande amor com reles mortais, maravilhosas. Sofria uma controvérsia, mas era fraco para mudar o curso das coisas. Restava pouco a compartilhar quanto a epifanias e descobertas. Estava sempre impregnado da mesma revelação: o conhecimento dum nova mulher, apaixonar-se por ela. Ocorre a satisfação do desejo ser a sua perenização, sentença da perpétua insatisfação desse desejo que torna as paixões superficiais e efêmeras, quando não são, não necessariamente. Gerard sabia mas pouco adiantava saber.A ciência em nada se relaciona com a paixão, exato se é conhecimento que faz oscilar o pensamento em dores e alegrias.Ora, nada tendo vivido para renovar o seu dizer, suas palavras perdiam o sentido. Se nos relacionamentos ao vivo, que pouco exigem, isso era verdade, quando o relacionamento acontecia por meio da Internet ou dos selos ( não abandonava Gerard a magia do percurso de casa ao prédio os correios funcionam, insubstituível), mais verdadeiro isso se tornava.

Estava tecido seu assunto. Desabafou com Sílvia. Fugiam-lhe as idéias."É porque lhe foge a vida" -- leu na tela do computador. A médica tinha razão. Mas por isso estava ali, falando de si mesmo,o que detestava, para se libertar, justificou-se. Do outro lado da tela, distante de Celbba muitos e muitos quilômetros mas muito mais perto do que a telefonista do hotel, que ocupava o aposento ao lado do quarto de Gerard, a mulher soltou os cabelos negros que cairam à altura dos seus ombros. Levantou-se.

Doutora, não mentira. Chegou a ser a mais jovem infectologista do Centro Médico de São Braico, capital ao norte de Celbba. Era ainda uma residente quando se cansou da arrogância dos colegas, da máfia branca envolvida com políticos e farmacêuticos. Dos que usavam a medicina para ganhar dinheiro. E dos que por meio dela assediavam e satisfaziam suas concupiscências. Nessa época decidiu pôr sua linha telefônica a serviço do computador e de amizades eletrônicas. Os programas se alinharam à sua assinatura no serviço de acesso da Rede (naquela época em que a Internet nascia); logo derramava sua alma pelo ciberespaço, mantendo-se assim viva. O aficionado de uma sinfonia não retira da vida o mesmo que inspirou o músico ao compor. Até hora de comer o aroma da comida consola da fome. A simples consciência de que Gerard existia, vivendo no mesmo planeta, fazia com que Silvia suportasse melhor suas frustrações e estados depressivos, constante motivo de preocupação de seus amigos. Especialmente de sua melhor amiga, Rose Lens.

Talvez, pensou, se refugiasse um dia naquela Celbba de sonho e ali terminasse seu tempo na Terra. Trabalharia, quem sabe, no hospital da vila. Conviver com tamanha incidência de contágio levaria ao esquecimento de si mesma. Pensava nisso insistentemente, apesar do alerta constante da senhora Lens em relação a Celbba, insistindo na perversidade do lugar. Rose era infeliz no casamento, evidentemente isso refletia na sua avaliação da cidade natal do marido. “Me lembrei que vou ter que dar um telefonema” – leu Gerard na tela. “Mais tarde nos falamos”. Seria bom uns dias com a amiga antes que a encontrasse em Washington.

Nessa viagem, Silvia atingiria uma suscetibilidade insuportável. Seus nervos eram cordas superesticadas. Tangidas, tiniam o som mais agudo de sua alma. Entretanto adquirira um discernimento admirável de todos os meandros da vida. Tanta sabedoria só lhe podia ser dada para encarar a morte. Vez por outra, no hotel, Rose a surpreende. Silvia escreve. A senhora Lens pedia para ler e, ao terminar, boquiaberta, dizia estar impressionada. Usava as palavras como a amiga usava as tintas. Sem constrangimentos que afetam a arte mas não a ciência. Criavam, de suas catarses, mais que arte, religiosidade. Mas a senhora Lens não podia deixar de se preocupar. Algo havia estranho. Um humor por demais negro, expansões chegadas à morbidez. O misticismo de Silvia prescindia de Deus. Em todo caso, era uma poeta formidável. Jamais deveria ter perdido tanto tempo com a medicina. Esperava pela palavra adequada como os amiguinhos de Michele buscavam a onda perfeita, e surfava na linguagem como na internet. Washington esteve nublada durante a estada delas em abril. Era uma cidade feia e violenta, cheio de mendigos. A massa de trabalhadores, por causa da criminalidade, vivia em cidades vizinhas, boa parte no arrabalde, em Maryland ou Virginia. Expor ali não foi uma experiência agradável para a senhora Lens.

Precisava que seus quadros tocassem as pessoas. Odiava hermetismo. Foi assim de repente que se surpreendeu reacionária. Ela, uma mulher liberada, que adorava sexo e fumava maconha sempre que podia. Logo ela. Agora não conseguia se imaginar traindo um marido que a maltratava, nem mesmo separada dele. Talvez caísse na bebida se o fizesse, e seria pior, conjeturava. E sabe lá se conseguia manter seu nível de vida se passasse a viver só de seus ganhos. Pela mesma razão, não podia se afastar demais dos caprichos da crítica. Precisava continuar vendendo. O que considerava suas melhores obras, não saia de seu ateliê. Era muito insegura para achar que o que ela gostava os outros gostassem também. Desafiava as dimensões da tela mas não as tendências do mercado. Como forma de luta, preferia cheirar uma carreira quando a pressão era muita. No dia que os contestadores deixassem de se auto-destruir, ouviu de alguém na mostra de Washington, talvez houvesse esperança. Mas a elite eram os outros, esses que compravam seus quadros e lhe concediam aura de artista rebelde. Sua agente, quando tinha uma, dizia que é “super-de-bom-tom ser meio maldita”.

Mas a senhora Lens sentia-se desconfortável num mundo onde alguém se torna ídolo para tantos, e depois abandona os que o adorava, não seria usufruir tudo que lha concedeu essa consagração. Por isso não ia à TV dar entrevistas em vésperas de exposições. Falar sobre seu trabalho? – deveria falar por si mesmo. Sem ser cem por cento autêntica, mesmo assim, cumpria que fizesse com que as pessoas pensassem. E ela própria remoldar sua alma. A arte é ciência entre a loucura e a terapia, pensava. Picada de um serpente cujo antídoto é seu próprio veneno.

Nessa época da viagem a Washington, a senhora Lens já havia conhecido Gerard e Gerard vivia na flagrância da senhora Lens. Ambos se sabiam. Apenas os dois. Ninguém jamais desconfiaria enquanto o amor não se concretizasse sob o céu de Celbba. Apenas Silvia, por força da coincidência.

Mas voltemos à imagem da senhora Lens tirando seus óculos. Penderam em seu peito quando ela atendeu o telefone com um alô arrastado. Na sala de estar, cujas paredes acolhiam uma tonalidade íntima entre o amarelo e o vermelho, com as arandelas de sol em conchas e abajures a quebrar o dourado, projetando na parede sua imitação em contornos escurecidos, espectros dos móveis e objetos, seres espargidos pela sombra em movimentação prazerosa, nuances quentes acolhendo quem entrasse. E as lâmpadas alógenas abandonavam o foco sobre os quadros, dispostos em quatro menores eram: Goya, criança e animal; abstrações de Mondrian; uma foto de Evgen Bawcar, e o “Vinhedo Vermelho” de Van Gogh. Este último imaterializara-se em afeições e afinidades no espírito da senhora Lens, por contraste: ela, pintora menor, vendia bem a sua obra: mas uma autoria maior, o auto-retrato da senhora Lens, implacável em seu nicho sobre a lareira, colocado ali no transcurso da vaidade juvenil, na inconsciência da passagem do tempo, metaforizada pelos matizes introduzidos na réstia vinda das cortinas, homogênea e naufragosa, modificam o ambiente pela transformação do dia mantido do lado de fora – do nauscópio vê a terra o marinheiro, fantasiando prazeres e incômodos. As almofadas de cetim espalhadas pelo sofá cor-de-terra marcavam em pontos de retângulo o carpete, cheias de motivos esverdeados e triangulares, à espera de que a senhora Lens se estendesse para passar seus cansaços. Seu rosto no esquadramento de fundo cortinado e séctil juntou-se ao arranjo de flores secas.

Estava deitada, lendo sobre Cézanne, quando o telefone tocou. O caleçon azul de seda mista ondulou-se deixando adivinhar as formas das coxas sendo divididas em luz de lâmpada no tecido. O sutiã estampado encheu-se quando inspirou. Quem poderia deleitar-se com a visão, uma vez que a senhora Lens estava só, como sempre? Vestia-se para si mesma há muito tempo, desnudava-se para si mesma. Ao andar pelo tapete, seus pés pequenos o marcavam.

Ouvindo a voz da amiga atender o telefone, -- Rose? disse Silvia. Como está?
Que bom ouvir a sua voz!...
-- Silvia? Há quanto tempo! O que tem feito?
Silvia queria falar do que gostaria de fazer. Queria ver a senhora Lens, ir a Celbba.
A senhora Lens respondeu animada que, claro, lhe daria muito prazer.
O George não ia achar ruim?
O George não ia achar nada. Quando Silvia estava pretendendo viajar?
Um pouco antes da exposição. Quando Rose iria para os Estados Unidos? Poderiam ir juntas.
Sim, iriam juntas.
E as coisas?
Iguais.
-- Você precisa tomar uma decisão.
-- Não é assim trágico.

Ele a maltrata?
Maltratá-la seria estar consciente de que a senhora Lens existia.
Silvia se perguntava como Rose pôde se casar.
A senhora Lens pensava que o noivo era apenas um homem desajeitado. E pensou que poderia dar um jeito nisso, que podia ensiná-lo.
Bobagem, as pessoas não mudam assim.
Quem dera ele fosse só um homem desajeitado e a senhora Lens nada conseguisse para que deixasse de ser.
E a menina?
Estava bem de saúde. Sabe como são os adolescentes, disse a senhora Lens. O que esperar deles exatamente? Silvia podia imaginar que a amiga foi ter uma conversa com a filha, porque achou que ela estava exagerando na maneira de se vestir, com biquínis minúsculos e shorts enfiados e...
-- A senhora fala como se estivesse tratando com uma predadora -- dissera Michele na ocasião.
-- Mas é exatamente o que está parecendo!, minha filha.
-- Fale pela senhora, mamãe!
Silvia lembrou que elas também haviam sido adolescentes.
-- Faz tempo...
-- Nem tanto...
A senhora Lens estava feliz. Para quando devia esperá-la?
Segunda à tarde?
Tudo bem. E, estava ótimo. Assim tenho mais tempo, disse a senhora Lens. Michele estaria na escola e George no trabalho.
-- Será bom rever você. Tenho novidades.
Alguém?
De certa forma.
Como era isso?
Quando ela chegasse, conversaria. Mas você sabe, adiantou Silvia, que eu tenho um computador em casa.
Vadia... Silvia dissera que iria comprar um para trabalhar!
Lidar com homens é um trabalho exaustivo.
A senhora Lens pensava que a amiga os tivesse deixado de lado.
Como dissera, “é um homem apenas de certa forma”.
Nas pausas, a senhora Lens podia ouvir o refrão do mar, sempiterno. Também o ouvia Gerard ao desligar o computador. Desejaria retirar todo o prazer da melodia mas contentou-se em ter a intensidade de percepção possível. Não era capaz da plenitude dos sentimentos que a música pode passar. Perdeu-se no céu parcialmente estrelado, pensando na mulher da praia. Ela caminhava pela areia úmida com jeito de nereida, uma rainha, caminhando na areia como se nas nuvens, a carregar o paraíso consigo na brisa de novembro. O rosto desenhava-se em proporções características de bebês. Os olhos eram grandes e muito abertos. Gerard não tinha certeza mas acreditava-os castanhos. Não era um rosto fora do comum. Irradiava beleza de aura. Transfigurava-a numa deusa despercebida. Não para Gerard, insone que adorava os filmes de Hanna Schygulla e lia tanta Clarice Lispector. O porte vestal admitia um corpo talhado para o amor. Cabelos e pescoço, seios e coxas, pés e mãos, tornozelos e ombros, costas e barriga, como se o amor existisse não em si mesmo, mas naquele corpo. O acesso se dava não por conhecimento mas imaginação.

Viu-se diante dela, nos montes abrigando-se da solidão tempestuosa, na austral curva escura descaindo no vale sombrio.

No corpo que gerava a fantasia de Gerard, a senhora Lens sentiu doer as costas e passou a mão direita em sua lombalgia. Tornava-se crônica.

Falando em homem, como estava o Octavio?
Octavio?
Aquele, da última vez que estiveram juntas, no shopping, havia esquecido?
Ah, fazia tempo que Silvia não o via... – Veja há quanto tempo não nos vemos, Rose!
-- Mas você existe, está aí, eu sei.
Silvia refletiu. Sentia a falta física das pessoas.
A senhora Lens não tinha muitas pessoas das quais devesse sentir falta.
Por que não se separava?
-- Michele o adora.
E Rose, quem adorava? Quem ia se sacrificar por ela?
Michele não pedira pra vir ao mundo.
Droga, Rose, exclamou Silvia. Nem você! Precisavam mesmo conversar com mis calma.
Os filhos crescem e será tarde. A senhor Lens bem o sabia.
A gratidão dos filhos não deveria ser suficiente para encher a vida de seus pais. Rose era jovem, atraente...
Silvia devia estar brincando.
Não estava, ora, trinta e quantos?
Oito!
Silvia estava com quarenta e se sentia desejável.
Tinha tempo para isso.
É o mal das mulheres casadas: não se permitirem ter tempo.
George era bom com a senhora Lens.
Era um canalha dissimulado.
Era bom com ela. O que fazia fora não podia mudar isso.
Mas mudava, disse Silvia. – Quer você admita ou não!
A menina o adorava.
E assim voltaram ao princípio.
A senhora Lens não podia afastar a filha do pai.
Sabe, disse Silvia, o mais curioso era que às vezes invejava a senhora Lens.
Realmente estava brincando.
Pertencia a um contexto normal, as mães são dependentes e as mulheres se sacrificam.
E Silvia, a que contexto pertencia? Dos artistas marginais?
Artistas? Era boa.
Quem larga a medicina para lidar com palavras tem que ser artista. A senhora Lens achava a correspondência de Silvia altamente poética. Sem contar o seu livro.
Silvia não era poeta. Mas, bem, se fosse, seria a sua uma poesia de erotismo.
Nenhum crítico definiria tão bem a obra da senhora Lens.
Quem pode definir uma verdadeira obra de arte?
A senhora Lens nada tinha contra os críticos. Eram tão sem importância...

-- Seus quadros são o que são, e daqui a cem anos terão o mesmo mistério. Mas os críticos do próximo século já reconhecerão seu valor. E os deste, quem se lembrará deles?
-- Não posso me queixar disso. Sou privilegiada. Eles já reconhecem.
-- Não. Elogiam. Porque você está no jogo. George é um homem influente, seu pai era rico, sua mãe famosa, você mesma condescende com o sistema em muita coisa. As portas sempre estiveram abertas para você. Você nunca entrou numa fila de banco, o que sabe do nosso sistema de Saúde ou como funciona a Educação nesse país é pura informação. Nunca esteve desempregada. Aí sim, pode-se dizer que é privilegiadíssima. Agora se imagine sem as costas assim quentes. Eu falo de reconhecimento verdadeiro. Dirão: Como ela era genial! Porque efetivamente a acharão genial, não como parte do jogo da troca de favores.
-- E em que minha vida de hoje se beneficiará?
-- Não se beneficiará. Mas a consciência de um tempo futuro que não viveremos pode ser consoladora.
Michele chegava da escola. – Vou ter de desligar. – disse a senhora Lens. Estaria esperando a amiga.

Monday, March 27, 2006

INTRODUÇÂO

A senhora Rose Lens fechou os olhos. Arfava. A inspiração enchia-lhe de vida exterior. O ar cortado pelas cigarras, recém-chegadas do fundo da terra, cindia a madrugada, de barulho de mar embebida, tornando-a multíplice na superfície de seu sentimento. Nos pensamentos relativos ao momento imediato, imprimiu-se um colorido digressivo: no pio da ave noturna, h´´a um desenho aos pés um desenho aos pés de uma freira no colégio. O raio lunar, em que nascia a voz dos tímbalos, retroagiu à primeira varanda sob uma lua, ou à madrugada em que saíra à luz vinda do ventre de sua mãe. E, como ouvisse do lado de fora da janela céleres os morcegos, sua vida, ao som da respiração profunda, ansiou antigos vôos. Ambíguas as suas lágrimas, queimando qual a hora de um reencontro, as reminiscências lhe enviaram, ao corpo inerte na cama, distantes praias de sua adolescência povoada de gaivotas. O pulsar do colchão de molas sob ela ateava um rubor vivíssimo, assim o verbo no princípio, ao momento em que fervilham esperanças com aspecto de alimento entre o sabor e o azedume, no decorrer das horas pêndulas da noite semelhante àquela em que a consciência fe-la acovardar-se diante da claridade gloriosa de um dia apenas reconhecido por certa memória imprecisa confundindo-se à perspectiva do livramento das preocupações inúteis com a qualidade de sua vida atual em relação à de outrora, através da estreita passagem, escura como a própria madrugada próxima do amanhecer e, mesmo antes da luz, pelo sol redimida.
Houve o momento em que o mundo desligou-se da noite e o primeiro efeito foi o descontraste das estrelas em relação ao céu que as guardava, preguiçosamente amanhecendo. Logo, a azáfama dos passarinhos. E o espaço entre os galos, que se houvera comprimido, voltou a se deslocar na distância, no frenesi da Natureza que precedia o sol – introdução do rei no salão de festas após algumas danças e jogos. Fez-se uma daquelas ocasiões especiais em que o minuto que passou pouco apresenta em comum com o atual, e o seguinte terá seus atributos peculiares, distando uns dos outros não o período de tempo que realmente os separa, mas todos os séculos culminantes no Juízo. Os sentimentos da senhora Lens transmudam-se conforme era desviada em átimos para sofrimentos por efeito do canto mais sombrio rente ao muro, onde se erguera o fícus no quintal imerso no arrebol, ou para as grandes esperanças traduzidas nos primeiros raios do sol tangendo a redondeza do monte diante do qual o mar bramia para o infinito seu incognoscível refrão de laudes dulcianas.

Por um instante o sol emprestou à varanda do prédio em frente um amarelo vivo a seqüência do canto dos pardais permeada de currueras e, entre um e outras, despontava a altivez de batidas barulhentas das asas curtas e largas. Era ainda primavera. No ônibus que se aproximava da cidade, cercava-se Gerard de cuidados e ansiedades; pela paz de uma nova vida seu coração reclamava. Na fraqueza de ser, a senhora Lens sentia do mal-estar uma série de angústias, como as angústias vezes outras desencadeavam o mal-estar. A vida era uma, fora e dentro. O gatinho que mia é a pontada que dói; os sons dos vizinhos, o vozerio das lembranças. A angularidade dos raios matinais concedeu um brilho azulejado à sacada. Onde refletia o sol, surgiu a intensidade na paleta da senhora Lens ao contornar de dourado os traços luminosos. Tanta luz não podia mais ser apenas registrada. A senhora Lens decidiu dar-se o dia. Descansaria. Passaria o dia na praia. A rua estava vazia. Uma música ao longe estranha incenso tpornou-se de beleza pairando, assemelhando-se aos hipérbatos. O ar mantinha-se quieto em suspenso mas as ramagens balançavam como se fora ao vento devido aos passarinhos. Em fração de segundos, despegavam-se. Adiantando-se a hora, a nova posição do sol no céu subtraiu o fulgor da varanda, ofertando-o ao resto do mundo.

Erguendo de súbito a cabeça, a senhora Lens saiu de seus pensamentos para a contemplação da circunferência incandescente que se erguera, um gesto orgulhoso da manhã, radical contraste com uma mulher mais e mais humilhada, adoentada, intensamente melancólica. A sonolência era mórbida; peito estava oprimido. Os intestinos trancavam toda a emoção num desconforto que a parecia estar inchando. Os lados da cabeça revezavam em aura, disputando o lugar em que deveria sofrer sua crise diária de enxaqueca. A Natureza ao redor, em sua eflorescência, mostrava-se indiferente aos males dos homens. Lá fora, as pessoas caminhavam indolentes em meio ao barulho de furadeiras e serrotes , lânguidas pelo calor. A senhora Lens podia pela janela ouvi-las.

Gostava de convívio, queria estar com gente, conhecer melhor as pessoas, saber de seus problemas. Mas resistia à idéia. Necessidade que se impôs de solidão, o amor da arte lhe deu também a fineza doméstica, um porte em casa como se fora salão de festas. A elegância secreta, a solenidade que emprestava ao sentar-se, apanhar algo no chão ou no alto do armário, sua maneira de segurar o pincel e a goiva ou de monologar críticas ao abstracionismo (que recusou ao conscientizar-se da indústria e comércio em que a arte se havia tornado), tudo lhe era reverencia, postura. Seminua diante de seus rascunhos, a poucos via e para tantos vivia.

Presente e passado estavam para se encontrar no futuro e o acorde forte e balsâmico de musgo que chegava no ar ainda no ar chegaria quando não mais houvesse a consciência da senhora Lens para discerni-lo. Aquela última manhã que vivia sem saber de Gerard Langre era aquela outra por vir no dia seguinte, pela lembrança de Gerard transtornada; e a tarde quando o conheceria compreendia a mesma tarde em que apenas o havia visto. Presente e futuro se haviam encontrado no passado e o amargo da boca desfeito pelo dentifrício se converteria em si mesmo quando acordasse com a imagem de Gerard no aniversário de Michele.

Onde antes o desejo, agora a sublimação da tonalidade bem ajustada. Onde antes a dispersão: procura de um novo tempo, não por causa de Gerard mas ao qual Gerard tão bem se adaptara.

Jamais, entretanto, colocaria outro sobrenome de homem quando se desvencilhasse desse que como um fardo carregava. Rose. Recostara-se e cobria e recobria o nome. Rose Ponce.

Novas alegrias, libertas de conceitos arraigados pelo costume; um melindre torna-se catarse; um gênero outro de destino tecidos pelos anjos da vontade aberta – eram o enigma da senhora Lens, à beira do verão e do sol do verão, cuja chave, oculta, todavia não escondia a vida atrás da vida e tempos adiante. O literato escreve com esferográfica, garatujando – forçou mais a caneta – datilografando, usando computador, cadernos, folhas avulsas; a página impressa será o carimbo cartorial substituindo a carne e o sangue. O pulsar violento de sua obra lhe remediria do esgotamento nervoso e da insociabilidade.

Bom que houvesse alguém em Celbba com quem pudesse conversar, em último caso, a quem pudesse recorrer; amigos, corre-se o risco d perde-los e conhecidos sempre podem se tornar amigos. E amigos artistas são gente ainda mais difícil de se encontrar. Então não desgastava seu relacionamento com os colegas da vila: um escritor de setenta anos, Alecsander, e um músico, Iorran Tess – sabia-lhes o nome e seus rostos, trocava cumprimentos com eles, seu coração ficava mais descansado tendo-os por perto. De resto, aceitava sem maiores resistências as imposições de sua natureza tímida, exceto pela perspectiva da intimidade com aquele jovem que inesperadamente chegaria para mudar a sua vida – como se no momento em que cortejasse, cumprindo a promessa de seus olhares furtivos, a senhora Lens devesse deixar de fazer parte do mundo e a sublimidade do amor se tranferisse à dos fenômenos naturais; como se ela mesma devesse então se tornar uma outra mulher e morrer para si mesma, abandonando o acanhamento do seu espaço de ser e habitando um outro e amplo.

Pesava a educação que recebera. Não importava que os valores de seu pai fossem cristãos, de tolerância, se ele não era um homem tolerante. Sua mãe era passivamente feliz, apesar dos meneios de cabeça de Rose, que por sua vez não os queria desapontar – que diriam se soubessem que ela iria se divorciar? Seguia então sua farsa. Mas assustara-se de verdade quando, depois de uma violenta briga com George Lens, acabaram na cama, ela subjugada e – estremecia de pavor ao lembrar – orgástica. Se George tinha outras mulheres, isso passava por uma concessão da ortodoxia aos homens. Embora não ligasse para ela, ainda assim tinha um ciúme doentio, morador que não gosta da casa mas é o proprietário e sente-se no dever de zelar pelo imóvel. Percebera afinal que certas preferências sexuais do marido tinham mais a ver com uma vontade real de machucar do que com fantasia ou mesmo tara. O jeito como lidava no trabalho a enojava, enganando as pessoas, e seu sarcasmo ao falar das pobres vítimas de seu estelionato. Exsurgira dos infernos para dentro da existência da senhora Lens. O que vira num homem como George? Contudo, se fosse diferente, gentil como Emílio por exemplo, decerto ela não lhe teria dado a mínima.

Gritos no quarto. Tinir de copos à cabeceira. Queixas chorosas. Pulsos agarrados arroxeando-se. Uma janela lá fora se abre. Os corpos se estendem nos lençóis amarrotados.

Se tornara todavia uma mulher madura, mãe de uma adolescente, não tinha mais direito de se iludir. Sentia-se ameaçada por George; projetava em George seus maus sentimentos latentes e por isso ele a atraia, como a moça estuprada ao se tornar roteirista violentará as moças de seus filmes e os romancistas inerentemente pedófilos, mas sentindo nojo do abuso de crianças, fazem que em suas obras os vilões o cometam? Deus, a virtude era árdua!... Durante algum tempo, incorreu no clássico erro de supor que poderia mudar o noivo; noutro período, acreditava que a maldade dele era apenas um tipo romântico de rebeldia. Agora, a bebida. Que ela não se atrevesse a questionar. Na verdade, ai dela se atrevesse a questionar, não os comportamentos de George e seus vícios e perversões, mas por que ela o tolerava – aí viria tanta coisa à tona, tanta coisa... as perdas, vaidade, ambição, frustrações, concupiscência, a droga... Tinha medo de não suportar. A senhora Lens chorou.

Sua arte primava pela linearidade. Nada de experimentalismos, tudo muito certinho. Mas sua vida não era certinha!...; sua personalidade era indireta, sinuosa. E o rapaz com quem iria ao paraíso em olhares distintos, as coisas transcorreram de um modo imprevisto mas naturalmente cheio de rodeios, adquiriram contornos fragmentários que sufocaram o tédio confortável e a técnica geométrica, vendaval que turba as fontes. Prolepse, diria que nada existia nela que pudesse homenagear a reciprocidade em relação a um rapaz mais jovem, saudável, atrás de quem as moças deveriam correr. Não que fosse feia. É que as estações a haviam sazonado – eis fa-lo o tempo com as frutas, queimou o sol a musa do cântico – estava escrito nas linhas de seu rosto e as carnes de seu corpo o revelavam. Entretanto é esse tipo de mulher que atrai os homens mais jovens, não as garotinhas. Se não era linda, com sua boca grande demais e s grossas pernas tortas, ainda assim os amigos de sua filha viviam boquiabertos. Agora o jovem sem nome daquele primeiro dia, por quem, Gerard, cruzaria diariamente em seu passeio matinal pela praia, simplesmente aceitou renunciar a ele e trocá-lo por uma força ligada à capacidade artística. Era essa a força de seu amor, maior que o próprio amor assumido, maior que o próprio amor, sua renúncia. Existem tantas cidades no mundo, era mesmo necessário, pensou, que o Destino o trouxesse justamente para cá?

“Estou tão cansada!...” ponderara ao voltar para casa após vê-lo defronte à pousada. “Estou consumida por esse desejo absurdo, não sei se será possível mantê-lo imaginário e fecundar a privação; de resto, não surgiu mesmo esse desejo com o destino de ser satisfeito mas de inquietar, o que talvez eu precisasse. Mas é forte demais, me aniquila – poderei controla-lo?, tornar arte esse impulso mais forte que eu, tanto que só poderei continuar meu dia após atenuar o arrebatamento? Ah... ah... respirara fundo antes de olhar de novo à sua volta o ateliê. “Isso não é amor”...

Se fizera um momento átono, onde as partes do aposento interrogaram o passado. As paredes brancas, a cadeira de imbuia, a primavera grená roçando o parapeito. O que se deveria do futuro aguardar. E a senhora Lens esperava no enlevo liberto da premência física, na intuição e na eternidade de uma disposição. Sentia o bater do coração com uma clareza, de tão singela, desumana. O quadro na parede – num foco efêmero do prisma pela manhãzinha embalsamado na janela, em raios reveladores das partículas de pó que habitavam o ambiente insalubre e conveniente ao espetáculo interior que se desenrolava em sua alma – era uma gravura de Escher. Mostrava o reflexo dum cenário numa poça: o céu à frente de um bosque interrompendo no chão as marcas de pneus e passos. A senhora Lens se via nesse caminho de verdura e barro assim como no firmamento e fugia em seu espírito, contornando o desconforto físico (além dos males crônicos, estava gripada), criança que olha a imensidão e estremece com o brilho do futuro refulgindo na noite.

Fora nada mais que uma troca de olhares, pensou a senhora Lens, quando na verdade nem mesmo isso. Mas, desde aquele primeiro dia em que viu Gerard, absorveu uma nova perspectiva de vida. Envolvida por uma paixão da qual se julgava imune, decidiu que não transgrediria, em nome da paixão, aos princípios católicos dentro dos quais fora educada. A vida estava muito além da atração física pelo sexo oposto. Havia o amor da Natureza, a paz no silêncio, a gestação de um filho, a arte. Viveria sem o objeto daquele seu súbito e inesperado desejo – decidiu -, viveria sem sequer o pensamento nele, em sua voz que lha diria “Muito prazer, senhora” no almoço de Michele, em seu queixo, em seu peito, em seus ombros, em suas coxas, em seu olhar doce que parecia ler os olhos dela – sua pele brilhante, ali se acendiam uns faróis que à noite eram trazidos pela senhora Lens pelo oceano que marulhava à porta da casa; o nariz era arrebitado e petulante, de criança mimada; sua boca não atrairia a atenção de qualquer mulher, mas Rose Lens, a pintora, a ela teria de fascinar a umidade assimétrica da borda rósea refletindo o tremor nas folhas das árvores, em uníssono com o coração da mulher. Por meio da contemplação, dadivava-se de uma vida vicária que deveria ser sua serva, contendo as loucuras de uma paixão proibida.

Amou-o desde primeiro momento. Impossível nega-lo. Amar aquele jovem era um sentimento que corria em suas entranhas como se fosse seu único habitat natural no imenso mundo. Estremecia em cada evocação dele. E se impôs o sacrifício. Certamente seria muito bom para sua arte. Fazia tempo que não pegava nos pincéis, nem nos lápis, ou no buril. Seu último quadro fora um estudo confuso da obra de Klinger, onde em vez de desenvolver uma tese da arte engajada, acabou envolvida pelos tons sombrios, se deixando arrastar por uma crise de nervos que jogou-a na cama em frangalhos. Flor cujo viço está prestes a morrer, cuidou-a com zelos de jardineiro o marido. Embora gozasse com as floradas novas e os brotinhos, não deixara ele de dispensar gratidão à planta que definhava para dar lugar àquelas que foram geradas quando da eflorescência anterior, do seu cacho de sementes. Esteve à sua cabeceira, com gentilezas de comerciante que lesa o cliente, ou se quisessem, de médico que assedia a paciente. E senhora Lens tinha pavor desses rasgos de bondade; nos filmes de terror o recanto bucólico esconde sempre orgias de sangue. Era ainda bela sua mulherzinha, ainda lhe serviria um bom tempo, por algum tempo ainda a amaria; quanto às outras, está no homem ter muitas mulheres, como está presa, ao ramo da planta atual, a que germinará no futuro – assim pensava George Lens entre a senhora Lens e a Zona Vermelha, entre as jovenzinhas frescas da noite e a esposa de 35 anos. Como um jardineiro que ao se dedicar às novas plantas não percebe que um arbusto seco está refrondejando, ele não lhe percebeu o olhar brilhante do amor, desde o primeiro momento, na véspera do aniversário de Michele, a Gerard dedicado.

Se não devia fidelidade ao marido infiel, à arte a fidelidade exigida não era a que se aprende por meios morais, mas aquela da qual se depende para sobreviver. Portanto, talvez George fosse necessário para que, de algum modo,ela pudesse ser plenamente Rose, com suas melhores virtudes, nascidas do sofrimento, e de grandes alegrias por contraste, registradas para sempre em suas telas. Talvez George fosse necessário – como o próprio Gerard, de outro modo.

Durante boa parte daquela manhã, ficou tempo diante do espelho. O fulminante amor que a colhera amor destinou-lhe mudanças, nada mais que Compreensão. Acontecera um dia com a pintura. Produzira-se em seus quadros, a partir da determinação que lhe tomara quando se mudou da megalópole para o vilarejo de pescadores, um tom insistente, qual um gemido, que também poderia chamar-se estilo. Regozijara ao descobrir o caminho a seguir – o mar, os matizes do mar, o barulho do mar, o céu do mar, e oh sim, tudo encontrava eco em seu espírito de mar. E o que ela, nereida, compreendia, passava-o às telas, em simbiose perfeita.

Por sobre o fracasso de seu casamento, fiava-se num amor que viesse redimi-la – um amor quando não se acredita mais no amor – e aquele era o amor, que nascera não na virtude do objeto de seu sentimento mas dos transportes da própria senhora Lens; não da alma do rapaz mas da que, dela mesma, em nome da fecundidade, da imaginação, da poesia, da felicidade de se saber capacitada a resistir à angústia com a realização de uma idéia, de controlar seu estado sensual pelo auto-domínio mnemônico, e sobreviver. A arte.

Talvez o responsável pelo seu amor fosse um tolo. Mas, visto que não iria se envolver, em nada alterava as profundezas e altitudes da paixão.

George Lens já havia saído. O alívio da senhora Lens confundiu-se com o terral que varria o vilarejo, para desespero das donas-de-casa obrigadas a levar uma segunda e terceira vez a última vassourada pela porta da frente, tarefa que a esperava, e esperaria mais – decidiu, ao entrar no amplo banheiro, espalhando na manhã associações pelo coração feminino coletivo, através daquele mesmo vento que saia pelo basculante, levando-lhe a vida para ares agora também respirados por Gerard.

O rapaz não a havia visto passar quando, depois de falar com o jardineiro, retornou à porta de entrada da hospedaria. Se esperava um novo encontro, na praia ao crepúsculo de sua chegada, era para trocar o primeiro olhar com a mulher, para rever a doce materialização de seu sonho,a nereide. A visão vertiginosa do rosto, do corpo triangularmente roliço e maduro, se deu em obnubilação, em meio à névoa. Gerard desesperadamente desejava ressuscitar em, ainda que efêmera, eterna troca de olhares que, estava seguro, transformaria sua vida para sempre.

A maré subia. Endurecendo o caminho, as ondas registravam as passadas de Gerard, caligrafia tensa do desejo de reencontrar a mulher. No vigor da espuma lançada com mais força, o mar apagava as marcas de um dos pés: figurava a laceração, preservação de apenas metade dos passos no sentido dos projetos que o distinguiram com tão singular vilarejo. A paixão o dividia. Supersensibilizando-o, tornava hercúleas as prosaicas primeiras tarefas como administrador da Pousada Vale do Celbba, emprego caído do céu quando um antigo patrão lembrou dele para o cargo. Agora porém, o rumor do mar em meio àqueles corredores elegantes que esperavam os turistas de verão mantinha-o prisioneiro de pensamentos obsessivos batendo as paredes, entranhando-se na grama fina da entrada; luzindo na fachada dórica, volatizando-se no acorde amadeirado e floral do aroma das boganvíleas que trepavam até o segundo andar e de lá se espalhavam por toda parte em cachos rosas, vermelhos e brancos. Porque tudo aquilo, como ele inteiro, havia sido marcado pelos devaneios apaixonados desde que vira a mulher, de quem retivera o pecado de sonhar. O que via ao entrar entre os capitéis triplos do prédio em que receberia com um sorriso nos lábios a burguesia em férias – no meio da qual se inseriria decerto um mulherio ávido – era ela, apenas ela, de que quem no dia seguinte saberia o nome.

Felicidade passara a ser a madrugada fresca do lado de fora das casas, na rede da varanda, em uma aldeia de pescadores, olhando as estrelas e criando a manhã de nadar e encontrar uma deusa madura; esperando o sol para segui-lo pelo mar turquesa após um dia cansativo fazendo contas. E voltar, deitar-se aos domingos com o segundo-caderno e o suplemento do jornal, na cama do quarto, com um bom ventilador, agradecendo a Deus por tê-lo encaminhado para uma vida assim, sonhando com aquela mulher.

A senhora Lens passava no rosto o creme hidratante que já usara no pescoço. Vestiria seu corpo – de ombros e seios pequenos, quadris largos, e a generosidade abaixo da cintura – com a bermuda floral que a deixaria à vontade sem constrangimentos, e a blusa sem mangas, seu uniforme de passeio à beira-mar. O corpo tem sua voz na postura, na naturalidade com que essa postura se mantem. A roupa fala e se conhece o equilíbrio como bom-gosto, atuando para revelar a identidade, função vital no caso da senhora Lens, calada e mais cada vez após a partida de Sílvia. Tinha entretanto vontade de falar. Por isso, mais que vaidade, a escolha do vestuário.



Foi esse tipo físico, o jeito simples, o porte elegante e sensual, que a princípio chamou a atenção de Gerard, ao despontar na praia quando chegava à cidade, acalentado pelos movimentos da Natureza ao redor. Sentia no rosto o vento e as roupas úmidas da chuva que batera contra a janela do ônibus durante a noite anterior. Achava-se do lado errado. Com desconforto se acomodara à poltrona. A vida pulsava na solidão da estrada tempestuosa. Logo tudo pareceria um sonho. Quando acordou na manhã seguinte, o ônibus deixando estrada e mais estrada para trás, um sol tímido arriscara-se em finos feixes e espíritos do ar se alimentavam dos pensamentos dos passageiros. Depositam em suas mentes o pressentimento que não saberão definir. Gerard emprestou às existências ocultas à força de sua esperança. À tardinha – o ônibus entrava no destino – ponto a ponto de referência, exaltou-se num arroubo próprio de pessoas em lugares novos, olhar de estrangeiro. Dava Celbba por definitiva em sua vida. A visão fugidia do vulto que tanto seria amado iniciou o processo do renascimento feminino do Deus por quem, na beleza do céu agora de súbito entrevisto na neblina, havia na adolescência se apaixonado.



A música que tocava em seus ouvidos possuía uma dimensão nova, uma espessura de ser desconhecida, algo que superpunha nele uma alma sobre a antiga. Condensava uma nova realidade, nas batidas do coração, outra consciência. Doce espectro aparece. Para harmonizar plenitudes pelas veias da imortalidade escrita na angústia do violino, nas onomatopéias do piano, na delicadeza do oboé. A música pairava em Gerard, melodia lisérgica de não-usualidade. Ouvindo, se enchia ele do olhar de Deus na desconhecida. Pensar na mulher, a quem inesperadamente amava, era erguer oração e sentir que fora ouvida. Provocava a reação física que sobrevinha aos profetas bíblicos, exaustão poderosa. Abriam-se em Gerard espaços para a paixão, a piedade. E, no caminho de seus comportamentos conhecidos, túneis inesperados de livramentos – do renascer da fé ao prazer da virtude, à vontade de conhecimento, a uma vigorosa temperança, ao amor à Natureza, às pessoas ao redor – ao amor, o amor pleno, na mulher materializado. Não valem, quando o amor vibra, as maquinações que, embora possam contornar uma revelação, não podem destruí-la. Sabia o que sentir, como agir quando a conhecesse. Não inventava ardis de omissão. Não se atinha à música ou à imagem da filha de sua esperança – seria pelo turbilhão arrastado. Nem mesmo lhe passava pela cabeça o vago Deus. Passeava ousadamente pelo medo das coisas que muito se desejam.



Pensava na mulher.



O alongamento dos músculos no ato de espreguiçar interagiu com um frio na barriga relativo ao velho sonho, viver numa vila como aquela, apaixonado. Derramando-se pelos telhados como uma mancha de luz sobre o casario, o sol impossibilitava a fixação no descanso verde de uma árvore, na sensualidade de um vermelho de tijolos ou na liberdade de algum azul, do céu ou no mar. Havia tirado momentaneamente os fones e, passando uma casa, ouviu vozes, enquanto o ônibus se aproximava e depois que se afastava.

Os sons do concerto marcaram a distância da casa. Ansiou um lar florido à beira-mar. Foi então. Naquela tarde em que chegava para assumir os computadores da pousada, viu a senhora Lens pela primeira vez. Se Deus tivesse aspecto humano, Deus mesmo, não seu Filho, se Deus possuísse traços e feições semelhantes às do Homem, seriam as feições daquela mulher; se tivesse um corpo, seria o seu corpo, lírio entre plantas espinhosas. Passeava à beira-mar. No momento em que o olhar de Gerard pousou nela, a desencadear aquele fogo que o devorou em esquecimentos, a senhora Lens encheu os pulmões de ar salino, fartando os seios pequenos que se lançaram além das fronteiras em V. Ônibus adiante, o ângulo de visão apresentou a mulher na casa dos quarenta, em toda a exuberância de um porte. O dorso eram costas propícias à cabotagem. Erguiam-se montes cobertos por uma névoa floral. A respiração reteve a imagem da senhora Lens nos minutos em que Gerard ainda esteve no ônibus antes de saltar. Chegara enfim.



A senhora Lens passava os dedos através dos cabelos. Pegou uma pequena flanela e se entreteve a limpar as lentes dos óculos. De longe, o viu. Estremeceu. Não foi atração física. Viu a compaixão no olhar do rapaz falando com Cronelin.



- Senhor Gerard? Muito prazer! Eu sou Cronelin, o jardineiro. Seja bem-vindo.

- Gerard, sorrindo, agradeceu. Disse a Cronelin que estava feliz por conhece-lo.



Era antes do verão. Chovia mais do que normalmente. Aproximava-se o Natal.

Arrumou apressadamente suas coisas, como se estivesse atrasado para um encontro, e saiu na direção do lugar na praia onde havia visto a mulher. O sol vermelho buscava seu próprio reflexo, tangendo-o na linha do horizonte, que mais confundia mares que os dividia. Logo os sóis estariam se unindo no oceano, sublime policromia desde o infinito até os pés espumosos das ondas. Gerard chegou ao lugar, marcado por um pé de tamarindo gigante, quando o sol encontrou seu duplo e a noite começou a cair.



Não havia ninguém

Friday, March 03, 2006

A tradição determinava que a vila de Celbba

A tradição determinava que a vila de Celbba, exuberante, jovem em flor, com sua orla marítima plena de curvas como as redondezas das versaletes no diário de uma adolescente, fixasse nos que chegavam com a rodovia, uma certeza peculiar, em que o vento soprava sempre sobre as tardes, balançando as boganvíleas no forte calor infestado de maribondos, pouco o amenizando. A aura era a de séculos de hábitos femininos dissolutos; o espírito, dos vendilhões que no século XIX viviam do tráfico de escravos. Desde a estudante à vendedora no balcão, da filhinha-de-papai à fugitiva de seu lar, da turista adolescente à radicada madura, as mulheres de Celbba tinham essa essência que as resumia, uma sensualidade mais vulgar que erótica, a ciência do movimento de lassidão. Os homens, tendo na indolência o paralelo, achavam que a principal fonte de recursos da vila era não a pesca, nem o artesanato de conchas, mas o turismo. A maioria dos que moravam ali o ano inteiro vivia em função da temporada de férias. Alguns entretanto, eram indiferentes ao verão – na verdade, a temporada os incomodava. Era o caso da senhora Rose Lens, pintora em cuja paleta durante esse período ensolarado e poluído, subsistia grande simplicidade, contrastando com o viço das cores do resto do ano, quando eram produzidos, com inspiração no cenário natural da vila, quadros crítica e público achavam brilhantes. O brilho literal, do ônibus, via-o Gerard quando chegou. Qualquer pessoa o veria. Na luz o vilarejo vivia do solo arenoso de mulheres requebrantes e rudes pescadores. Aos olhos da distância, havia um lirismo sensual e iluminado, que se perderia no crepúsculo,porque Celbba na verdade não dependia do turismo mas da luz.



Essa vizinhança de nativos em seus casebres e donos de mansões para aluguel acumulou-se numa mistura estranha, acrescentando à atmosfera da maledicência de cidade pequena a liberalidade perversa da metrópole. Celbba, na época, contava com menos de dez mil habitantes. Mas há qualquer coisa na comunidade que a faz parecer maior do que realmente é. Em comunidade, o mundo que constitui cada pessoa interfere nos outros mundos, como transmissão de rádio. A vida da cidade se expande. As pessoas de Celbba eram muito semelhantes, gente sensual e preguiçosa, esperando a temporada como quem torce por números na loteria. Mas se viam a senhora Lens, porque ela não era turista e ainda assim ia diariamente à praia, e tinha sempre dinheiro, e não se juntava as outras mulheres da vila para falar mal da vida alheia, diziam “Olhem, lá vem a madame...’ Gerard tampouco escaparia da língua do vilarejo. Arrogante. Gostava de esta só alguma parte do dia. Gênio difícil, introvertidíssimo. Sentia-se mulherengo porque mulheres haviam deixado de ser sinônimo de prazer para ser inquietação estética. Viria a amar a senhora Lens porque desejava a liberdade que, na vivência cotidiana do amor, está normalmente além dos relacionamentos. Amava o fruto por ser proibido, não pelo seu sabor real?



Celbba. Lugar maravilhoso. Castanheiras. O sol banhava dum milhão de nuances as folhas. Acompanhavam a orla. À pouca distância dos recifes de corais, passavam todos os dias, ao romper a aurora, barquinhos com dois homens; verificavam a rede, curvando-se no sentido do espelho de mar, tranqüilo conforme costumava ser no decurso das manhãs. À direita de quem chega, ergue-se o monte Lagar. Era centro de permanente discussão entre os moradores do lugar, relativa à procedência do nome. Na sua encosta formava-se a falésia onde a praia começava ao sul, com sua areia escura. Para onde quer que se olhe, pensou Gerard, montanhas ou mar. A chuva costumava sumir por grandes períodos e as tempestades anunciadas eram mais barulho, eletricidade e redemoinhos, do que água. S mulheres de Celbba vestiam-se de maneira que seria considerada indecente em qualquer cidade do interior. Ali era aceita a imposição do clima. Tanto pelas que queriam sentir-se confortáveis como pelas que pretendiam despertar desejos com a desculpa do calor. A população era flutuante, ninguém notou quando o estranho desceu do ônibus. Junte-se à paz turquesa a sensibilidade de um espírito nobre, e aí estava o principal efeito daquele lugar na senhora Lens. Há oito anos, veio á convite de um amigo com o qual casou. A princípio à procura de férias, para quinze dias de uma dieta de peixe. Mas acabou fazendo peixe, sobre a mesa da casa de tijolos vermelhos, seu cardápio para o resto da vida.



Aos poucos, as ruas passaram a fazer parte dela. O caminho do mar e a avenida do meio, de terra, que cortava o vilarejo,da prancha da balsa à lagoa. Aflorou nela igualmente a sensualidade por meio da qual Celbba promovia a unificação entre gente de bem e pessoas de caráter duvidoso. Casos mostravam passionalidade que a preguiça reprimia, crimes hediondos sobre os quais pairava silêncio. Essa maldição, incorporando-se à existência da senhora Lens, tornou-a uma mulher sombria e intensa. A catarse acontecia nos quadros. Continham motivos crepusculares e lúbricos.



No arrebol lascivo, desce o ônibus onde Gerard viaja.

Deixava para trás um emprego d caixa e uma vida luxuriosa testemunhada pelo apartamento que o banco oferecia a seus funcionários no prédio do próprio banco. Fugia da vida escravizada pelo desejo, pelo desgaste da capacidade estética e banalização dos relacionamentos. Chegar em Celbba, o vislumbre da cidadezinha assim que a rodovia chegava ao alto do monte... Gerard estava extasiado. Ali poderia sim viver em paz. Talvez mantivesse alguma correspondência. Continuaria se comunicando pelo computador com o resto do mundo. Escreveria para os amigos. Mas seriam relacionamentos livres da força que o mantinha aprisionado à estética do prazer na adoração das mulheres. Gerard estaria ardendo, perscrutando a cada momento de sua vida futura na vila a essência das coisas. O velho, à beira da estrada, com a colher tentava aproveitar o máximo do mamão partido ao meio antes de jogar a casca no lixo.



A culpa.

Como porém haver a dor do remorso e arrepender-se pela luxúria quando esta se confunde com beleza, e se ama seus segredos, nunca de todo conhecidos mesmo quando se revelam? Como recusar aos olhos a imagem feminil, se os próprios amigos do Gênesis desceram, abandonando seus postos eternos, por causa da formosura das filhas dos homens? Os olhos de Gerard, o cristalino sobre a retina e as superposições que registram forma e cor, como operário, trabalhavam visando o descanso. A recompensa vinha dum rosto de mulher. De um corpo de mulher. Era, sabia, mais que pecado, era escravidão. Se a luz da lâmpada não ilumina, que dirá quando apagada. Sabia. Desde de sempre, não puder evitar. Agora, um abrigo no vendaval. Brotava a flor na caverna, o amor nascia como jamais, da movimentação da senhora pela areia. Um talhe nobre de luz e sombras ao crepúsculo. Recortado depois contra o horizonte: último pouso dos olhos de Gerard antes que a perdesse naquele primeiro dia.

Wednesday, January 26, 2005

Com súbita piedade, Joana encarou Michele. O vento levantava as cortinas de modo quase perpendicular

ao umbral emprestando aa voz de Joana nuança desconhecida para ela mesma. Só entao se deu conta de que o amor por Gerard a transformara, mais até do que a perspectva da morte, entendendo que essa é a vertdadeira mudança no universo onde nada se cria - não o impacto mas o toque, não o golpe mas o afago, não o grto mas o sussurro, não a consciencia da morte próxima mas a consciência da vida que se acrescerá eventualmente da morte. Mudara, em proporção tão imensa quanto pequenos eram os fatores que a mudaram, num processo análoga ao da ausência e reencontro: o milagre só é espantoso para quem nao o acompanhou por meio da companhia cotidiana.
Os olhares se sustentaram até Michele se cansar e baixar o seu.
Mal se sustentava nas pernas. A amante do pai com Aids, o pai vindpo atender o ultimo pedido para que cuidasse do filho deles quando partisse. Mas o senhor Lens se recusou a crer que estivesse mesmo grávida é, se estivesse, que era ele o pai. Não sou prostituta, disse ela, sou mantida. você me mantinha quando estava com você, quando estava com você não tinha outros, insistira inutilmente.
Foi assim mesmo?, perguntou Michele humildemente, Nem tentou chantagear meu pai?
Nao é assim que as coisas funcionam comigo, disse Joana. Se quisesse fazer algo pela criança, que fizesse espontaneamente e levá-lo aa Justiça seria levar a execração quem ela amou, e a seu modo amou-a também.
Cheia de ímpetos de decoro e decencia, Michele, grata, ofereceu-se para cuidar do irmaozinho. Poderia adota-lo, se Gerard assim o quisesse. Cuidariam assim da pobre criança, condenada como sua mãe.
A senhora Lens deveria suspeitar...

Wednesday, December 29, 2004

O sino havia tocado. Joana se levantou da cama, olhou-se no espelho. Estava magérrima. Pálida, perdera muito cabelo.

A maconha controlava a intensidade aas vezes mórbida da quimioterapia. A vontade de vomitar chegou, súbita. Seu fornecedor, um jovem de 20 anos, havia sido preso, estuprado na cadeia, e suicidara. A irmã de Joana, surpreendida fumando, assustou-se e tentando fugir foi baleada. Mas, pensou Joana lavando a boca, os olhos encharcados e vermelhos, tanto alivio haveria em tão somente livrar-se dos efeitos colaterais em síndrome, a própria abstinência, e quanto de melhora a quimioterapia de fato proporcionava? Do líquido lacrimal insistente brotaram lágrimas de verdade, ao evocar o fruto de seu ventre. Levou aa mão a gaveta, apanhou o permanganato. Só pôde o medicamento atenuar a dor porque levou consigo a vida onde está a dor. O corpo foi encontrado no dia seguinte pela proprietária dos quartos. Assombrada pelo estado da moça, sentiu uma punhalada de compaixão.

A senhora Lens estacou, colocou os óculos e leu o bilhete da filha. Estranho Michele não ter ficado es esperado. Veio a imagem do Cristo na cruz, entregando o espírito, esse verdadeiro consolo e inspiração. Aperfeiçoara sua resistência aa dor e só depois se revelou a redenção humana. O relógio do pulso da senhora |Lens deu a hora cheia. Do rádio, a música enchia o ambiente entre as paredes gelo de sua sala de estar cheirando a pinho. Era um momento especial em sua vida, intuía. Quis que fosse. Viver, palavra tão pequena. O sangue corria quente. Veio a pequenina Michele, esperando que a colher fosse levada aa sua boca. Acorreu também a imagem de George, dez anos menos, segurança financeira, sem defeitos muito graves... E no começo me excitava tanto... — chorava a senhora Lens ao ombro de sua mãe, dias antes de a senhora Ponce morrer. “A vida não é só sexo minha filha”. A senhora Lens bem o sabia. Não teria se metido naquela situação se não soubesse.



Thursday, December 16, 2004

Quando George ainda subsistia de escrever estórias

pornográficas, era gentil no trato íntimo; depois de realizado financeiramente, tornou-se pornográfico, perdeu qualquer resquício de sensibilidade. A senhora Lens passou de si a lembrança. O calor da tarde percorria seu corpo. Pensou em Gerard, na tolerância que tinha para com Michele, em sua gentileza, na capacidade que tinha para ouvir. E isso embora ele não a amasse, ou não a amasse de modo especial, com o fervor com que amava a senhora Lens.

Michele estava na praia.

O crepúsculo introduz a noite e nova madrugada aos ventiladores se propõe. A aragem vespertina desliza e ondula o tecido leve da blusa. Que anda fazendo uma jovem tão doce , com esse estremecimento de bondade como uma criatura da grama que arde na canícula e sobre si pisa o infinito vermelho derramado sobre cinza, como o desejo, um meio de expor as coisas, de dispor os pensamentos, estudo de coxas sobre poética e exaurida forma. O desconhecido se dirigiu a Michele com sussurros obscenos e súplicas ávidas. Em silêncio, Michele se deixa apalpar. O estranho a leva para trás do parque de diversões e agora mostrar-lhe-á, porque ela quer que ele mostre, mas pensará ele pensará a ter forçado – o destino do homem, a sina do macho, a satisfação de que precisam.

Aa idéia se juntou o elemento de sonho e um ingrediente de tema na tela se dispôs. O rosto de Gerard, teimosamente oculto pelas nuances de doze, como a indicar santidade, era o rosto da própria senhora Lens. O caminho da arte, mercantilizada inutilmente o abominava, porque necessitava de sua independência financeira tanto quanto de expressar a poesia em sua alma. O rosto da senhora Lens oculto no de Gerard alinhou então rugas de expressão e um olhar desolado passeando pelos seus dilemas de menina e as indagações que fazia Michele, também a senhora Lens as fazia, e — como é mesmo que se costuma dizer? —... onde errara?


Monday, December 06, 2004

De tudo o que poderia ser atribuído a Michele

ninguém pensaria na capacidade d do gesto generoso após o qual saiu pela orla em final de temporada andando contra o vento vespertino. A perda do amor de Gerard que julgava uma posse análoga aa sua casa, roupas e carro, seguiu-se um despojamento estranho. Calor. Sofriam as plantas nos jardins, definham como enfermos terminais. Suavam as pessoas que não podiam estar na praia e todos reclamavam assim como na época do frio se queixariam igualmente as bicicletas derrapavam nos areais sobrecarregaando os rolamentos traseiros, que muitas vezes não resistiam, fazendo das oficinas lugares sempre cheios, até porque o calor tornava os pneus mais sensíveis. Lembrou então Michele de dias semelhantes de sua infância — aquele em especial quando George bateu na senhora Lens enquanto as flores definhavam sob o sol implacável e deslumbrante. Uma semana depois, chovera depois de meses e Michele presencia, como voltasse o pai de uns dias fora, escondida, pela fresta da porta, as lágrimas de George, ajoelhado diante da senhora Lens, pedindo que o perdoasse, que ele jamais faria aquilo novamente. Chorou tanto que foi até consolado por sua vitima. O monte, coberto pelas nuvens, deixara de reinar absoluto, como houvesse a paisagem se despido O curso do rio retomou volume e corria, lado lesta da cordilheira. Naquela noite, isso Michele não sabia com certeza mas podia imaginar, George possuiu a senhora Lens desde que eram namorados e lhe dissera palavras de amor prometendo mudar e ser um bom marido, fora a bebida, a maldita bebida... A senhora Lens fez que acreditou e na verdade gostaria de acreditar mas sabia que a bebida não modifica a essência das pessoas. Após ter sumido um tempo enorme, voltou a ser ouvido o barulho do mar. Ao sul da foz, onde antigamente traficavam escravos, negocia-se cocaína em casas humilde. Quando acordara pela manha, havia silencio na casa e Michele, menina de seus oito anos, saiu com seu cão pela praia, esta mesma praia, mas não havia vento como agora, pois as manhas da vila esqueciam-se num mar parado e num espelho calmo.

A roupa ainda não tirada dos varais tremulava, estalando como uma fogueira.

Não pudera a senhora Lens figurar de sublimação todo seu sentimento por Gerard. Tal a limitação da vontade diante do destino básico. Malgrado suas teorias, seus sonhos de uma arte melhor, aa medida em que era empurrada peara a vida do genro, da qual abdicara ele os prazeres, ela mais se entregava, qual um afogado que não tem mais forças para lutar contra a correnteza. Não podia mais e tomou-se de diferente animo fez-se madura como no físico. Sua luminescência era a daqueles que se santificaram. Pela primeira vez que vira Gerard, passara a se preocupar com ele, com sua saúde, com seus sentimentos, gostaria de saber como ele superava aquela situação. Falava muito em Deus;estava Deus o fortalecendo? Um primeiro pretexto, iria visitá-los e, quando Michele os deixasse a sós, diria as palvaras.

Naquela tarde, prolixa, antes de se entregar aa inspiração de Chagal, brotara dela um desejo subitamente premente de pintar qualquer coisa sugerida pelos Gestos de Michaux. Sujeitaria-se qualquer coisa, menos aa experiência banal de um outro dia sem a satisfação de seu amor – um desejo ardente de pintar o gesto definitivo da vida, que seria a pintura de um gesto seu na direção de Gerard para ao mesmo o toque eterno de um único beijo.

Após ouvir da arrumadeira o recado da filha, passava descalça pela a ansiedade no frio contato com a terra das ruas da vila que, posto o sol no horizonte, refrescam-se da viração noturna.