A Senhora Lens livrar-se-ia da depressão por esse amor. A partir do amor saberia a perniciosidade de depender do amor para se libertar. Ao vê-lo diante da pousada, graças a um itinerário confuso e resoluto como certos textos, que desviaria o ônibus em sinuosidades de caminho, enquanto ela, com poucos passos pela areia, chegava ao mesmo lugar ao mesmo tempo, soube que era êle. Ou não seria ninguém. Sonho e realidade tendo o mesmo peso. O equilíbrio entre o deslumbre perante um rosto e a atração de um corpo, e maravilhar-se com a doçura de olhos infantis e gestos benévolos desse ente raro, o homem gentil.
A temporada, portanto, dividia a vila de Celbba: a do verão cosmopolita, e a do resto do ano, provinciana. Por volta do Natal, com fortuitas tempestades eletrificadas, da exposição desses dois períodos aos dias de sol, nascia um corpo social rústico e rico, feito de pecuaristas e suas famílias em férias juntando-se aos moradores anuais, pescadores, comerciantes e a gente a ele ligada, além dos inevitáveis especuladores, obedientes a leis tão imutáveis quanto aquelas que definem, na semelhança entre pais e filhos, o gene.
Gerard chegou em novembro, quando a cidadezinha apenas ensaiava a temporada, mas pôde sentir logo as duas faces da vila. O feriadão trouxera turistas em número considerável.
Quando se faz a curva, vislumbra-se a vila. O sol se põe a noroeste nessa época do ano, por detrás da cordilheira verdejante. O vento sopra geralmente numa só direção, terral, em rajadas fortes, todas as tardes. O mar é raso durante imenso trecho -- quase dá para se chegar às ilhas sem nadar --, transparente. O branco corte litorâneo começa e termina em choupanas. Um rio corre ruidoso ladeando a rua interna paralela à beira-mar. No extremo-sul, repousam as águas azuis da Lagoa do Trancoso. Assim viu Gerard desvendar-se Celbba à sua frente. Na quarta-feira anterior abandonara-se ao prazer de se desfazer de todos os seus laços e hábitos da cidade grande. Chegou na quinta. Estabeleceu-se no seu apartamento da pousada. O computador ficara no canto esquerdo junto à parede da janela: a impressora e o fax, numa mesa menor de fórmica. Já conectado ao seu trabalho, fazendo de novo parte dos milhões de navegantes da grande rede no planeta,Gerard devaneou. Durante todo o período do crepúsculo que não incluiu sua ida ao lugar onde tivera a visão da mulher, a expectativa devorou-o -- contemplava o oceano, trilha sonora do vilarejo, o fundo musical da nova vida que pretendia -- - barulho do mar, o mesmo de sempre som perene e absoluto, independente dos ouvidos. Mas dele os ouvidos se apropriam para associações que indicam a transitoriedade humana, à força do contraste com a perpetuidade do mar.
A imagem da mulher na praia o envolvia.
Não seria a primeira obsessão amorosa em sua vida, mas se partisse de um desejo essencial, se fosse o canto da verdade esquecida que buscava, certamente -- pensou -- seria a última. Na qualidade de obsessão se desfaria para abrir espaço a um amor autêntico, que o entregasse, homem, a uma mulher, sentenciando-o a amar, quando amasse não mais a si mesmo refletido na pessoa de seu amor, mas essa mesma pessoa. E ao mundo indiretamente.
O primeiro dia de Gerard em Celbba, na realidade um final de dia, transcorreu em paz. A vila se resumiu inicialmente na vista de sua janela na pousada; depois em sua inserção naquela vista, quando descem à praia para nadar até os recifes (ao voltar de onde tivera a visão), deixando no quarto, antes vazio, o halo de sua presença. No mar, Gerard viu-se diante da prateação que ia de sua mão esquerda, quando era levada à frente, ao horizonte. O sol, responsável por aquele reflexo de mistérios que unem o Homem ao Infinito derramava-se obliquamente sobre a vila matiza as vidraças dos pequenos prédios defronte ao mar. Sua luz infiltrava-se pela primeira transversal de sul para norte no calçadão da praia. Mulheres e suas filhas respiravam artesanato de conchas, furando os búzios com alicate-de-unha e colocando-os no fio de pesca enquanto enchiam a conversa de maledicência para equilibrar a desgastante tarefa. Os raios seguiam até a Fonte Sarracena diamantizando o jorro d'água, seguindo até a lateral da igreja,plúmbea, rachada e cheirando a urina de festeiros ímpios. No chão havia pedaços velhos e verde-mofo de orçaz, maços amassados e guimbas de cigarro, seringas e, ocultas pela parede triste, as lágrimas do padre aidético. Vira na televisão o noticiário local divulgar pesquisa que dava Celbba como o maior índice de incidência de contaminação pelo vírus.Rapidamente a tarde esmaecia. Esticavam-se as sombras de pessoas e prédios. Na vermelhidão do céu, a fachada dos correios. Nos "orelhões" à entrada do posto telefônico, a sublimidade do entardecer inspirava os jovens turistas. Haviam acabado de chegar e ligavam para suas famílias. Transmitiam aos parentes mais que informações, revelações. Uma estrela desponta; depois outra. E mais uma. À noite descia sobre a praça do cemitério. Histórias de amor e morte se congregavam na quietude entre as lápides. No recém inaugurado shopping, as luzes mais fortes dos corredores acendiam-se no burburinho dos que chegaram na vila para enforcar o dia de trabalho entre o feriado e o final de semana. Gerard só sentiria essa população flutuante de Celbba no dia seguinte. Agora, acabava de tomar banho após nadar e sentara-se diante do computador.
Relacionava a forma esplendorosa das coisas da vida com uma demasiada objetiva maneira de as descrever. Se isso o incomodava, às internautas encantava.
Diferentemente de ao vivo, relacionar-se com as mulheres assim não era como jogar pedras no lago e ficar observando os círculos na água se multiplicarem até desaparecer. Criava a expectativa do que não usufruia.Um lago,beira de um lago, colinas em torno de um lago, sol por detrás das colinas.
A internet era a revolução que Gerard sempre pedira a Deus. Incomodava-se com as transformações sociais projetadas por utopias. A rede era uma realidade. Não que fosse um nerd, longe disso. Impunha-se limites rigorosos no uso do computador. Mas era sublime relacionar-se com pessoas no mundo inteiro sem sair do quarto. Namorar, ficar, flertar, sem ser pressionado (demais) pelas aflições do desejo; exercitar sua literatura com a ambição primária dos escritores: edição e público. Era-lhe bastante seu micro devidamente configurado, o modem conectado, e a senha. Não pretendia ficar 150 horas mensais de sua existência - de resto já virando a faixa dos vinte e cinco anos - indo na tela a museus, hotéis, pubs, conhecer o guarda-roupa da atriz famosa, ver o banho da modelo escultural ou ouvir o belíssimo hino da Patanzânia. A vida é curta, mesmo para um nauta da Rede. Mas conhecer quem jamais conheceria senão assim, e instantâneamente, era tempo decerto ganho.
Queria resgatar-se. Remir o tempo em que a timidez impediu as delícias de um namorico. Seu prazer literário recente era devorar um livro à hora do almoço na biblioteca. Agora tomara gosto pela prosa em que podia tornar-se a fala espontânea de alguem. Como seu próprio médico, examinar o corpo da prosa, diagnosticar e administrar tratamento. Quanto às aflições do desejo, se não podia ver uma saia, descobriu que um pensamento digitado por uma mulher carregava tremendo potencial de sensualidade. Quando já se definia como um pervertido, Deus lhe apareceu nas entrelinhas de um correio eletrônico, como já se revelara em olhos cristalinos, bocas entreabertas, ombros cheios e brilhantes, fartas ancas firmes.
A epifania não tem hora nem lugar, acontece de vez em quando. Mas não restringe-se. Não sempre. Às vezes. Sempre, não o suportaria o ser humano.
Não sem algum desconforto, começa a digitar. O contato se faz. Uma velha correspondente, nunca a havia visto. Uma amiga virtual. Médica. Ao menos se dizia.
O prazer da correspondência eletrônica estava proporcionalmente ligado às descobertas de Gerard feitas em alguma impressão da Beleza. Difícil a vida colocá-las num cotidiano. Mas era possível vive-las eventualmente, e bom que ao vive-las se pudesse partilhar a vida. Era bom ter amigos, melhor sem as sublimes dificuldades da presença. De uma maneira ou de outra, eram raros. A terra seca anseia a chuva. Se não há no cérebro humano uma peculiaridade superior de que careçam os animais, em sua alma mora um recôndito sagrado de onde se parte para a glória, ou para a perdição. Essa raridade, quase epifania, sensual (mas não carnal), que o córtex retém de longe em longe, árias numa cantata, fazia tempo não a experimentava Gerard. Seu desejo de mulheres transpusera a fronteira. O instinto sexual ou o prazer estético ou as horas da noite que a solidão rejeita. Gerard, um mundo no mundo, o espiritualizado amante de Deus,ao menor sinal da beleza sensual, traia seu grande amor com reles mortais, maravilhosas. Sofria uma controvérsia, mas era fraco para mudar o curso das coisas. Restava pouco a compartilhar quanto a epifanias e descobertas. Estava sempre impregnado da mesma revelação: o conhecimento dum nova mulher, apaixonar-se por ela. Ocorre a satisfação do desejo ser a sua perenização, sentença da perpétua insatisfação desse desejo que torna as paixões superficiais e efêmeras, quando não são, não necessariamente. Gerard sabia mas pouco adiantava saber.A ciência em nada se relaciona com a paixão, exato se é conhecimento que faz oscilar o pensamento em dores e alegrias.Ora, nada tendo vivido para renovar o seu dizer, suas palavras perdiam o sentido. Se nos relacionamentos ao vivo, que pouco exigem, isso era verdade, quando o relacionamento acontecia por meio da Internet ou dos selos ( não abandonava Gerard a magia do percurso de casa ao prédio os correios funcionam, insubstituível), mais verdadeiro isso se tornava.
Estava tecido seu assunto. Desabafou com Sílvia. Fugiam-lhe as idéias."É porque lhe foge a vida" -- leu na tela do computador. A médica tinha razão. Mas por isso estava ali, falando de si mesmo,o que detestava, para se libertar, justificou-se. Do outro lado da tela, distante de Celbba muitos e muitos quilômetros mas muito mais perto do que a telefonista do hotel, que ocupava o aposento ao lado do quarto de Gerard, a mulher soltou os cabelos negros que cairam à altura dos seus ombros. Levantou-se.
Doutora, não mentira. Chegou a ser a mais jovem infectologista do Centro Médico de São Braico, capital ao norte de Celbba. Era ainda uma residente quando se cansou da arrogância dos colegas, da máfia branca envolvida com políticos e farmacêuticos. Dos que usavam a medicina para ganhar dinheiro. E dos que por meio dela assediavam e satisfaziam suas concupiscências. Nessa época decidiu pôr sua linha telefônica a serviço do computador e de amizades eletrônicas. Os programas se alinharam à sua assinatura no serviço de acesso da Rede (naquela época em que a Internet nascia); logo derramava sua alma pelo ciberespaço, mantendo-se assim viva. O aficionado de uma sinfonia não retira da vida o mesmo que inspirou o músico ao compor. Até hora de comer o aroma da comida consola da fome. A simples consciência de que Gerard existia, vivendo no mesmo planeta, fazia com que Silvia suportasse melhor suas frustrações e estados depressivos, constante motivo de preocupação de seus amigos. Especialmente de sua melhor amiga, Rose Lens.
Talvez, pensou, se refugiasse um dia naquela Celbba de sonho e ali terminasse seu tempo na Terra. Trabalharia, quem sabe, no hospital da vila. Conviver com tamanha incidência de contágio levaria ao esquecimento de si mesma. Pensava nisso insistentemente, apesar do alerta constante da senhora Lens em relação a Celbba, insistindo na perversidade do lugar. Rose era infeliz no casamento, evidentemente isso refletia na sua avaliação da cidade natal do marido. “Me lembrei que vou ter que dar um telefonema” – leu Gerard na tela. “Mais tarde nos falamos”. Seria bom uns dias com a amiga antes que a encontrasse em Washington.
Nessa viagem, Silvia atingiria uma suscetibilidade insuportável. Seus nervos eram cordas superesticadas. Tangidas, tiniam o som mais agudo de sua alma. Entretanto adquirira um discernimento admirável de todos os meandros da vida. Tanta sabedoria só lhe podia ser dada para encarar a morte. Vez por outra, no hotel, Rose a surpreende. Silvia escreve. A senhora Lens pedia para ler e, ao terminar, boquiaberta, dizia estar impressionada. Usava as palavras como a amiga usava as tintas. Sem constrangimentos que afetam a arte mas não a ciência. Criavam, de suas catarses, mais que arte, religiosidade. Mas a senhora Lens não podia deixar de se preocupar. Algo havia estranho. Um humor por demais negro, expansões chegadas à morbidez. O misticismo de Silvia prescindia de Deus. Em todo caso, era uma poeta formidável. Jamais deveria ter perdido tanto tempo com a medicina. Esperava pela palavra adequada como os amiguinhos de Michele buscavam a onda perfeita, e surfava na linguagem como na internet. Washington esteve nublada durante a estada delas em abril. Era uma cidade feia e violenta, cheio de mendigos. A massa de trabalhadores, por causa da criminalidade, vivia em cidades vizinhas, boa parte no arrabalde, em Maryland ou Virginia. Expor ali não foi uma experiência agradável para a senhora Lens.
Precisava que seus quadros tocassem as pessoas. Odiava hermetismo. Foi assim de repente que se surpreendeu reacionária. Ela, uma mulher liberada, que adorava sexo e fumava maconha sempre que podia. Logo ela. Agora não conseguia se imaginar traindo um marido que a maltratava, nem mesmo separada dele. Talvez caísse na bebida se o fizesse, e seria pior, conjeturava. E sabe lá se conseguia manter seu nível de vida se passasse a viver só de seus ganhos. Pela mesma razão, não podia se afastar demais dos caprichos da crítica. Precisava continuar vendendo. O que considerava suas melhores obras, não saia de seu ateliê. Era muito insegura para achar que o que ela gostava os outros gostassem também. Desafiava as dimensões da tela mas não as tendências do mercado. Como forma de luta, preferia cheirar uma carreira quando a pressão era muita. No dia que os contestadores deixassem de se auto-destruir, ouviu de alguém na mostra de Washington, talvez houvesse esperança. Mas a elite eram os outros, esses que compravam seus quadros e lhe concediam aura de artista rebelde. Sua agente, quando tinha uma, dizia que é “super-de-bom-tom ser meio maldita”.
Mas a senhora Lens sentia-se desconfortável num mundo onde alguém se torna ídolo para tantos, e depois abandona os que o adorava, não seria usufruir tudo que lha concedeu essa consagração. Por isso não ia à TV dar entrevistas em vésperas de exposições. Falar sobre seu trabalho? – deveria falar por si mesmo. Sem ser cem por cento autêntica, mesmo assim, cumpria que fizesse com que as pessoas pensassem. E ela própria remoldar sua alma. A arte é ciência entre a loucura e a terapia, pensava. Picada de um serpente cujo antídoto é seu próprio veneno.
Nessa época da viagem a Washington, a senhora Lens já havia conhecido Gerard e Gerard vivia na flagrância da senhora Lens. Ambos se sabiam. Apenas os dois. Ninguém jamais desconfiaria enquanto o amor não se concretizasse sob o céu de Celbba. Apenas Silvia, por força da coincidência.
Mas voltemos à imagem da senhora Lens tirando seus óculos. Penderam em seu peito quando ela atendeu o telefone com um alô arrastado. Na sala de estar, cujas paredes acolhiam uma tonalidade íntima entre o amarelo e o vermelho, com as arandelas de sol em conchas e abajures a quebrar o dourado, projetando na parede sua imitação em contornos escurecidos, espectros dos móveis e objetos, seres espargidos pela sombra em movimentação prazerosa, nuances quentes acolhendo quem entrasse. E as lâmpadas alógenas abandonavam o foco sobre os quadros, dispostos em quatro menores eram: Goya, criança e animal; abstrações de Mondrian; uma foto de Evgen Bawcar, e o “Vinhedo Vermelho” de Van Gogh. Este último imaterializara-se em afeições e afinidades no espírito da senhora Lens, por contraste: ela, pintora menor, vendia bem a sua obra: mas uma autoria maior, o auto-retrato da senhora Lens, implacável em seu nicho sobre a lareira, colocado ali no transcurso da vaidade juvenil, na inconsciência da passagem do tempo, metaforizada pelos matizes introduzidos na réstia vinda das cortinas, homogênea e naufragosa, modificam o ambiente pela transformação do dia mantido do lado de fora – do nauscópio vê a terra o marinheiro, fantasiando prazeres e incômodos. As almofadas de cetim espalhadas pelo sofá cor-de-terra marcavam em pontos de retângulo o carpete, cheias de motivos esverdeados e triangulares, à espera de que a senhora Lens se estendesse para passar seus cansaços. Seu rosto no esquadramento de fundo cortinado e séctil juntou-se ao arranjo de flores secas.
Estava deitada, lendo sobre Cézanne, quando o telefone tocou. O caleçon azul de seda mista ondulou-se deixando adivinhar as formas das coxas sendo divididas em luz de lâmpada no tecido. O sutiã estampado encheu-se quando inspirou. Quem poderia deleitar-se com a visão, uma vez que a senhora Lens estava só, como sempre? Vestia-se para si mesma há muito tempo, desnudava-se para si mesma. Ao andar pelo tapete, seus pés pequenos o marcavam.
Ouvindo a voz da amiga atender o telefone, -- Rose? disse Silvia. Como está?
Que bom ouvir a sua voz!...
-- Silvia? Há quanto tempo! O que tem feito?
Silvia queria falar do que gostaria de fazer. Queria ver a senhora Lens, ir a Celbba.
A senhora Lens respondeu animada que, claro, lhe daria muito prazer.
O George não ia achar ruim?
O George não ia achar nada. Quando Silvia estava pretendendo viajar?
Um pouco antes da exposição. Quando Rose iria para os Estados Unidos? Poderiam ir juntas.
Sim, iriam juntas.
E as coisas?
Iguais.
-- Você precisa tomar uma decisão.
-- Não é assim trágico.
Ele a maltrata?
Maltratá-la seria estar consciente de que a senhora Lens existia.
Silvia se perguntava como Rose pôde se casar.
A senhora Lens pensava que o noivo era apenas um homem desajeitado. E pensou que poderia dar um jeito nisso, que podia ensiná-lo.
Bobagem, as pessoas não mudam assim.
Quem dera ele fosse só um homem desajeitado e a senhora Lens nada conseguisse para que deixasse de ser.
E a menina?
Estava bem de saúde. Sabe como são os adolescentes, disse a senhora Lens. O que esperar deles exatamente? Silvia podia imaginar que a amiga foi ter uma conversa com a filha, porque achou que ela estava exagerando na maneira de se vestir, com biquínis minúsculos e shorts enfiados e...
-- A senhora fala como se estivesse tratando com uma predadora -- dissera Michele na ocasião.
-- Mas é exatamente o que está parecendo!, minha filha.
-- Fale pela senhora, mamãe!
Silvia lembrou que elas também haviam sido adolescentes.
-- Faz tempo...
-- Nem tanto...
A senhora Lens estava feliz. Para quando devia esperá-la?
Segunda à tarde?
Tudo bem. E, estava ótimo. Assim tenho mais tempo, disse a senhora Lens. Michele estaria na escola e George no trabalho.
-- Será bom rever você. Tenho novidades.
Alguém?
De certa forma.
Como era isso?
Quando ela chegasse, conversaria. Mas você sabe, adiantou Silvia, que eu tenho um computador em casa.
Vadia... Silvia dissera que iria comprar um para trabalhar!
Lidar com homens é um trabalho exaustivo.
A senhora Lens pensava que a amiga os tivesse deixado de lado.
Como dissera, “é um homem apenas de certa forma”.
Nas pausas, a senhora Lens podia ouvir o refrão do mar, sempiterno. Também o ouvia Gerard ao desligar o computador. Desejaria retirar todo o prazer da melodia mas contentou-se em ter a intensidade de percepção possível. Não era capaz da plenitude dos sentimentos que a música pode passar. Perdeu-se no céu parcialmente estrelado, pensando na mulher da praia. Ela caminhava pela areia úmida com jeito de nereida, uma rainha, caminhando na areia como se nas nuvens, a carregar o paraíso consigo na brisa de novembro. O rosto desenhava-se em proporções características de bebês. Os olhos eram grandes e muito abertos. Gerard não tinha certeza mas acreditava-os castanhos. Não era um rosto fora do comum. Irradiava beleza de aura. Transfigurava-a numa deusa despercebida. Não para Gerard, insone que adorava os filmes de Hanna Schygulla e lia tanta Clarice Lispector. O porte vestal admitia um corpo talhado para o amor. Cabelos e pescoço, seios e coxas, pés e mãos, tornozelos e ombros, costas e barriga, como se o amor existisse não em si mesmo, mas naquele corpo. O acesso se dava não por conhecimento mas imaginação.
Viu-se diante dela, nos montes abrigando-se da solidão tempestuosa, na austral curva escura descaindo no vale sombrio.
No corpo que gerava a fantasia de Gerard, a senhora Lens sentiu doer as costas e passou a mão direita em sua lombalgia. Tornava-se crônica.
Falando em homem, como estava o Octavio?
Octavio?
Aquele, da última vez que estiveram juntas, no shopping, havia esquecido?
Ah, fazia tempo que Silvia não o via... – Veja há quanto tempo não nos vemos, Rose!
-- Mas você existe, está aí, eu sei.
Silvia refletiu. Sentia a falta física das pessoas.
A senhora Lens não tinha muitas pessoas das quais devesse sentir falta.
Por que não se separava?
-- Michele o adora.
E Rose, quem adorava? Quem ia se sacrificar por ela?
Michele não pedira pra vir ao mundo.
Droga, Rose, exclamou Silvia. Nem você! Precisavam mesmo conversar com mis calma.
Os filhos crescem e será tarde. A senhor Lens bem o sabia.
A gratidão dos filhos não deveria ser suficiente para encher a vida de seus pais. Rose era jovem, atraente...
Silvia devia estar brincando.
Não estava, ora, trinta e quantos?
Oito!
Silvia estava com quarenta e se sentia desejável.
Tinha tempo para isso.
É o mal das mulheres casadas: não se permitirem ter tempo.
George era bom com a senhora Lens.
Era um canalha dissimulado.
Era bom com ela. O que fazia fora não podia mudar isso.
Mas mudava, disse Silvia. – Quer você admita ou não!
A menina o adorava.
E assim voltaram ao princípio.
A senhora Lens não podia afastar a filha do pai.
Sabe, disse Silvia, o mais curioso era que às vezes invejava a senhora Lens.
Realmente estava brincando.
Pertencia a um contexto normal, as mães são dependentes e as mulheres se sacrificam.
E Silvia, a que contexto pertencia? Dos artistas marginais?
Artistas? Era boa.
Quem larga a medicina para lidar com palavras tem que ser artista. A senhora Lens achava a correspondência de Silvia altamente poética. Sem contar o seu livro.
Silvia não era poeta. Mas, bem, se fosse, seria a sua uma poesia de erotismo.
Nenhum crítico definiria tão bem a obra da senhora Lens.
Quem pode definir uma verdadeira obra de arte?
A senhora Lens nada tinha contra os críticos. Eram tão sem importância...
-- Seus quadros são o que são, e daqui a cem anos terão o mesmo mistério. Mas os críticos do próximo século já reconhecerão seu valor. E os deste, quem se lembrará deles?
-- Não posso me queixar disso. Sou privilegiada. Eles já reconhecem.
-- Não. Elogiam. Porque você está no jogo. George é um homem influente, seu pai era rico, sua mãe famosa, você mesma condescende com o sistema em muita coisa. As portas sempre estiveram abertas para você. Você nunca entrou numa fila de banco, o que sabe do nosso sistema de Saúde ou como funciona a Educação nesse país é pura informação. Nunca esteve desempregada. Aí sim, pode-se dizer que é privilegiadíssima. Agora se imagine sem as costas assim quentes. Eu falo de reconhecimento verdadeiro. Dirão: Como ela era genial! Porque efetivamente a acharão genial, não como parte do jogo da troca de favores.
-- E em que minha vida de hoje se beneficiará?
-- Não se beneficiará. Mas a consciência de um tempo futuro que não viveremos pode ser consoladora.
Michele chegava da escola. – Vou ter de desligar. – disse a senhora Lens. Estaria esperando a amiga.
A temporada, portanto, dividia a vila de Celbba: a do verão cosmopolita, e a do resto do ano, provinciana. Por volta do Natal, com fortuitas tempestades eletrificadas, da exposição desses dois períodos aos dias de sol, nascia um corpo social rústico e rico, feito de pecuaristas e suas famílias em férias juntando-se aos moradores anuais, pescadores, comerciantes e a gente a ele ligada, além dos inevitáveis especuladores, obedientes a leis tão imutáveis quanto aquelas que definem, na semelhança entre pais e filhos, o gene.
Gerard chegou em novembro, quando a cidadezinha apenas ensaiava a temporada, mas pôde sentir logo as duas faces da vila. O feriadão trouxera turistas em número considerável.
Quando se faz a curva, vislumbra-se a vila. O sol se põe a noroeste nessa época do ano, por detrás da cordilheira verdejante. O vento sopra geralmente numa só direção, terral, em rajadas fortes, todas as tardes. O mar é raso durante imenso trecho -- quase dá para se chegar às ilhas sem nadar --, transparente. O branco corte litorâneo começa e termina em choupanas. Um rio corre ruidoso ladeando a rua interna paralela à beira-mar. No extremo-sul, repousam as águas azuis da Lagoa do Trancoso. Assim viu Gerard desvendar-se Celbba à sua frente. Na quarta-feira anterior abandonara-se ao prazer de se desfazer de todos os seus laços e hábitos da cidade grande. Chegou na quinta. Estabeleceu-se no seu apartamento da pousada. O computador ficara no canto esquerdo junto à parede da janela: a impressora e o fax, numa mesa menor de fórmica. Já conectado ao seu trabalho, fazendo de novo parte dos milhões de navegantes da grande rede no planeta,Gerard devaneou. Durante todo o período do crepúsculo que não incluiu sua ida ao lugar onde tivera a visão da mulher, a expectativa devorou-o -- contemplava o oceano, trilha sonora do vilarejo, o fundo musical da nova vida que pretendia -- - barulho do mar, o mesmo de sempre som perene e absoluto, independente dos ouvidos. Mas dele os ouvidos se apropriam para associações que indicam a transitoriedade humana, à força do contraste com a perpetuidade do mar.
A imagem da mulher na praia o envolvia.
Não seria a primeira obsessão amorosa em sua vida, mas se partisse de um desejo essencial, se fosse o canto da verdade esquecida que buscava, certamente -- pensou -- seria a última. Na qualidade de obsessão se desfaria para abrir espaço a um amor autêntico, que o entregasse, homem, a uma mulher, sentenciando-o a amar, quando amasse não mais a si mesmo refletido na pessoa de seu amor, mas essa mesma pessoa. E ao mundo indiretamente.
O primeiro dia de Gerard em Celbba, na realidade um final de dia, transcorreu em paz. A vila se resumiu inicialmente na vista de sua janela na pousada; depois em sua inserção naquela vista, quando descem à praia para nadar até os recifes (ao voltar de onde tivera a visão), deixando no quarto, antes vazio, o halo de sua presença. No mar, Gerard viu-se diante da prateação que ia de sua mão esquerda, quando era levada à frente, ao horizonte. O sol, responsável por aquele reflexo de mistérios que unem o Homem ao Infinito derramava-se obliquamente sobre a vila matiza as vidraças dos pequenos prédios defronte ao mar. Sua luz infiltrava-se pela primeira transversal de sul para norte no calçadão da praia. Mulheres e suas filhas respiravam artesanato de conchas, furando os búzios com alicate-de-unha e colocando-os no fio de pesca enquanto enchiam a conversa de maledicência para equilibrar a desgastante tarefa. Os raios seguiam até a Fonte Sarracena diamantizando o jorro d'água, seguindo até a lateral da igreja,plúmbea, rachada e cheirando a urina de festeiros ímpios. No chão havia pedaços velhos e verde-mofo de orçaz, maços amassados e guimbas de cigarro, seringas e, ocultas pela parede triste, as lágrimas do padre aidético. Vira na televisão o noticiário local divulgar pesquisa que dava Celbba como o maior índice de incidência de contaminação pelo vírus.Rapidamente a tarde esmaecia. Esticavam-se as sombras de pessoas e prédios. Na vermelhidão do céu, a fachada dos correios. Nos "orelhões" à entrada do posto telefônico, a sublimidade do entardecer inspirava os jovens turistas. Haviam acabado de chegar e ligavam para suas famílias. Transmitiam aos parentes mais que informações, revelações. Uma estrela desponta; depois outra. E mais uma. À noite descia sobre a praça do cemitério. Histórias de amor e morte se congregavam na quietude entre as lápides. No recém inaugurado shopping, as luzes mais fortes dos corredores acendiam-se no burburinho dos que chegaram na vila para enforcar o dia de trabalho entre o feriado e o final de semana. Gerard só sentiria essa população flutuante de Celbba no dia seguinte. Agora, acabava de tomar banho após nadar e sentara-se diante do computador.
Relacionava a forma esplendorosa das coisas da vida com uma demasiada objetiva maneira de as descrever. Se isso o incomodava, às internautas encantava.
Diferentemente de ao vivo, relacionar-se com as mulheres assim não era como jogar pedras no lago e ficar observando os círculos na água se multiplicarem até desaparecer. Criava a expectativa do que não usufruia.Um lago,beira de um lago, colinas em torno de um lago, sol por detrás das colinas.
A internet era a revolução que Gerard sempre pedira a Deus. Incomodava-se com as transformações sociais projetadas por utopias. A rede era uma realidade. Não que fosse um nerd, longe disso. Impunha-se limites rigorosos no uso do computador. Mas era sublime relacionar-se com pessoas no mundo inteiro sem sair do quarto. Namorar, ficar, flertar, sem ser pressionado (demais) pelas aflições do desejo; exercitar sua literatura com a ambição primária dos escritores: edição e público. Era-lhe bastante seu micro devidamente configurado, o modem conectado, e a senha. Não pretendia ficar 150 horas mensais de sua existência - de resto já virando a faixa dos vinte e cinco anos - indo na tela a museus, hotéis, pubs, conhecer o guarda-roupa da atriz famosa, ver o banho da modelo escultural ou ouvir o belíssimo hino da Patanzânia. A vida é curta, mesmo para um nauta da Rede. Mas conhecer quem jamais conheceria senão assim, e instantâneamente, era tempo decerto ganho.
Queria resgatar-se. Remir o tempo em que a timidez impediu as delícias de um namorico. Seu prazer literário recente era devorar um livro à hora do almoço na biblioteca. Agora tomara gosto pela prosa em que podia tornar-se a fala espontânea de alguem. Como seu próprio médico, examinar o corpo da prosa, diagnosticar e administrar tratamento. Quanto às aflições do desejo, se não podia ver uma saia, descobriu que um pensamento digitado por uma mulher carregava tremendo potencial de sensualidade. Quando já se definia como um pervertido, Deus lhe apareceu nas entrelinhas de um correio eletrônico, como já se revelara em olhos cristalinos, bocas entreabertas, ombros cheios e brilhantes, fartas ancas firmes.
A epifania não tem hora nem lugar, acontece de vez em quando. Mas não restringe-se. Não sempre. Às vezes. Sempre, não o suportaria o ser humano.
Não sem algum desconforto, começa a digitar. O contato se faz. Uma velha correspondente, nunca a havia visto. Uma amiga virtual. Médica. Ao menos se dizia.
O prazer da correspondência eletrônica estava proporcionalmente ligado às descobertas de Gerard feitas em alguma impressão da Beleza. Difícil a vida colocá-las num cotidiano. Mas era possível vive-las eventualmente, e bom que ao vive-las se pudesse partilhar a vida. Era bom ter amigos, melhor sem as sublimes dificuldades da presença. De uma maneira ou de outra, eram raros. A terra seca anseia a chuva. Se não há no cérebro humano uma peculiaridade superior de que careçam os animais, em sua alma mora um recôndito sagrado de onde se parte para a glória, ou para a perdição. Essa raridade, quase epifania, sensual (mas não carnal), que o córtex retém de longe em longe, árias numa cantata, fazia tempo não a experimentava Gerard. Seu desejo de mulheres transpusera a fronteira. O instinto sexual ou o prazer estético ou as horas da noite que a solidão rejeita. Gerard, um mundo no mundo, o espiritualizado amante de Deus,ao menor sinal da beleza sensual, traia seu grande amor com reles mortais, maravilhosas. Sofria uma controvérsia, mas era fraco para mudar o curso das coisas. Restava pouco a compartilhar quanto a epifanias e descobertas. Estava sempre impregnado da mesma revelação: o conhecimento dum nova mulher, apaixonar-se por ela. Ocorre a satisfação do desejo ser a sua perenização, sentença da perpétua insatisfação desse desejo que torna as paixões superficiais e efêmeras, quando não são, não necessariamente. Gerard sabia mas pouco adiantava saber.A ciência em nada se relaciona com a paixão, exato se é conhecimento que faz oscilar o pensamento em dores e alegrias.Ora, nada tendo vivido para renovar o seu dizer, suas palavras perdiam o sentido. Se nos relacionamentos ao vivo, que pouco exigem, isso era verdade, quando o relacionamento acontecia por meio da Internet ou dos selos ( não abandonava Gerard a magia do percurso de casa ao prédio os correios funcionam, insubstituível), mais verdadeiro isso se tornava.
Estava tecido seu assunto. Desabafou com Sílvia. Fugiam-lhe as idéias."É porque lhe foge a vida" -- leu na tela do computador. A médica tinha razão. Mas por isso estava ali, falando de si mesmo,o que detestava, para se libertar, justificou-se. Do outro lado da tela, distante de Celbba muitos e muitos quilômetros mas muito mais perto do que a telefonista do hotel, que ocupava o aposento ao lado do quarto de Gerard, a mulher soltou os cabelos negros que cairam à altura dos seus ombros. Levantou-se.
Doutora, não mentira. Chegou a ser a mais jovem infectologista do Centro Médico de São Braico, capital ao norte de Celbba. Era ainda uma residente quando se cansou da arrogância dos colegas, da máfia branca envolvida com políticos e farmacêuticos. Dos que usavam a medicina para ganhar dinheiro. E dos que por meio dela assediavam e satisfaziam suas concupiscências. Nessa época decidiu pôr sua linha telefônica a serviço do computador e de amizades eletrônicas. Os programas se alinharam à sua assinatura no serviço de acesso da Rede (naquela época em que a Internet nascia); logo derramava sua alma pelo ciberespaço, mantendo-se assim viva. O aficionado de uma sinfonia não retira da vida o mesmo que inspirou o músico ao compor. Até hora de comer o aroma da comida consola da fome. A simples consciência de que Gerard existia, vivendo no mesmo planeta, fazia com que Silvia suportasse melhor suas frustrações e estados depressivos, constante motivo de preocupação de seus amigos. Especialmente de sua melhor amiga, Rose Lens.
Talvez, pensou, se refugiasse um dia naquela Celbba de sonho e ali terminasse seu tempo na Terra. Trabalharia, quem sabe, no hospital da vila. Conviver com tamanha incidência de contágio levaria ao esquecimento de si mesma. Pensava nisso insistentemente, apesar do alerta constante da senhora Lens em relação a Celbba, insistindo na perversidade do lugar. Rose era infeliz no casamento, evidentemente isso refletia na sua avaliação da cidade natal do marido. “Me lembrei que vou ter que dar um telefonema” – leu Gerard na tela. “Mais tarde nos falamos”. Seria bom uns dias com a amiga antes que a encontrasse em Washington.
Nessa viagem, Silvia atingiria uma suscetibilidade insuportável. Seus nervos eram cordas superesticadas. Tangidas, tiniam o som mais agudo de sua alma. Entretanto adquirira um discernimento admirável de todos os meandros da vida. Tanta sabedoria só lhe podia ser dada para encarar a morte. Vez por outra, no hotel, Rose a surpreende. Silvia escreve. A senhora Lens pedia para ler e, ao terminar, boquiaberta, dizia estar impressionada. Usava as palavras como a amiga usava as tintas. Sem constrangimentos que afetam a arte mas não a ciência. Criavam, de suas catarses, mais que arte, religiosidade. Mas a senhora Lens não podia deixar de se preocupar. Algo havia estranho. Um humor por demais negro, expansões chegadas à morbidez. O misticismo de Silvia prescindia de Deus. Em todo caso, era uma poeta formidável. Jamais deveria ter perdido tanto tempo com a medicina. Esperava pela palavra adequada como os amiguinhos de Michele buscavam a onda perfeita, e surfava na linguagem como na internet. Washington esteve nublada durante a estada delas em abril. Era uma cidade feia e violenta, cheio de mendigos. A massa de trabalhadores, por causa da criminalidade, vivia em cidades vizinhas, boa parte no arrabalde, em Maryland ou Virginia. Expor ali não foi uma experiência agradável para a senhora Lens.
Precisava que seus quadros tocassem as pessoas. Odiava hermetismo. Foi assim de repente que se surpreendeu reacionária. Ela, uma mulher liberada, que adorava sexo e fumava maconha sempre que podia. Logo ela. Agora não conseguia se imaginar traindo um marido que a maltratava, nem mesmo separada dele. Talvez caísse na bebida se o fizesse, e seria pior, conjeturava. E sabe lá se conseguia manter seu nível de vida se passasse a viver só de seus ganhos. Pela mesma razão, não podia se afastar demais dos caprichos da crítica. Precisava continuar vendendo. O que considerava suas melhores obras, não saia de seu ateliê. Era muito insegura para achar que o que ela gostava os outros gostassem também. Desafiava as dimensões da tela mas não as tendências do mercado. Como forma de luta, preferia cheirar uma carreira quando a pressão era muita. No dia que os contestadores deixassem de se auto-destruir, ouviu de alguém na mostra de Washington, talvez houvesse esperança. Mas a elite eram os outros, esses que compravam seus quadros e lhe concediam aura de artista rebelde. Sua agente, quando tinha uma, dizia que é “super-de-bom-tom ser meio maldita”.
Mas a senhora Lens sentia-se desconfortável num mundo onde alguém se torna ídolo para tantos, e depois abandona os que o adorava, não seria usufruir tudo que lha concedeu essa consagração. Por isso não ia à TV dar entrevistas em vésperas de exposições. Falar sobre seu trabalho? – deveria falar por si mesmo. Sem ser cem por cento autêntica, mesmo assim, cumpria que fizesse com que as pessoas pensassem. E ela própria remoldar sua alma. A arte é ciência entre a loucura e a terapia, pensava. Picada de um serpente cujo antídoto é seu próprio veneno.
Nessa época da viagem a Washington, a senhora Lens já havia conhecido Gerard e Gerard vivia na flagrância da senhora Lens. Ambos se sabiam. Apenas os dois. Ninguém jamais desconfiaria enquanto o amor não se concretizasse sob o céu de Celbba. Apenas Silvia, por força da coincidência.
Mas voltemos à imagem da senhora Lens tirando seus óculos. Penderam em seu peito quando ela atendeu o telefone com um alô arrastado. Na sala de estar, cujas paredes acolhiam uma tonalidade íntima entre o amarelo e o vermelho, com as arandelas de sol em conchas e abajures a quebrar o dourado, projetando na parede sua imitação em contornos escurecidos, espectros dos móveis e objetos, seres espargidos pela sombra em movimentação prazerosa, nuances quentes acolhendo quem entrasse. E as lâmpadas alógenas abandonavam o foco sobre os quadros, dispostos em quatro menores eram: Goya, criança e animal; abstrações de Mondrian; uma foto de Evgen Bawcar, e o “Vinhedo Vermelho” de Van Gogh. Este último imaterializara-se em afeições e afinidades no espírito da senhora Lens, por contraste: ela, pintora menor, vendia bem a sua obra: mas uma autoria maior, o auto-retrato da senhora Lens, implacável em seu nicho sobre a lareira, colocado ali no transcurso da vaidade juvenil, na inconsciência da passagem do tempo, metaforizada pelos matizes introduzidos na réstia vinda das cortinas, homogênea e naufragosa, modificam o ambiente pela transformação do dia mantido do lado de fora – do nauscópio vê a terra o marinheiro, fantasiando prazeres e incômodos. As almofadas de cetim espalhadas pelo sofá cor-de-terra marcavam em pontos de retângulo o carpete, cheias de motivos esverdeados e triangulares, à espera de que a senhora Lens se estendesse para passar seus cansaços. Seu rosto no esquadramento de fundo cortinado e séctil juntou-se ao arranjo de flores secas.
Estava deitada, lendo sobre Cézanne, quando o telefone tocou. O caleçon azul de seda mista ondulou-se deixando adivinhar as formas das coxas sendo divididas em luz de lâmpada no tecido. O sutiã estampado encheu-se quando inspirou. Quem poderia deleitar-se com a visão, uma vez que a senhora Lens estava só, como sempre? Vestia-se para si mesma há muito tempo, desnudava-se para si mesma. Ao andar pelo tapete, seus pés pequenos o marcavam.
Ouvindo a voz da amiga atender o telefone, -- Rose? disse Silvia. Como está?
Que bom ouvir a sua voz!...
-- Silvia? Há quanto tempo! O que tem feito?
Silvia queria falar do que gostaria de fazer. Queria ver a senhora Lens, ir a Celbba.
A senhora Lens respondeu animada que, claro, lhe daria muito prazer.
O George não ia achar ruim?
O George não ia achar nada. Quando Silvia estava pretendendo viajar?
Um pouco antes da exposição. Quando Rose iria para os Estados Unidos? Poderiam ir juntas.
Sim, iriam juntas.
E as coisas?
Iguais.
-- Você precisa tomar uma decisão.
-- Não é assim trágico.
Ele a maltrata?
Maltratá-la seria estar consciente de que a senhora Lens existia.
Silvia se perguntava como Rose pôde se casar.
A senhora Lens pensava que o noivo era apenas um homem desajeitado. E pensou que poderia dar um jeito nisso, que podia ensiná-lo.
Bobagem, as pessoas não mudam assim.
Quem dera ele fosse só um homem desajeitado e a senhora Lens nada conseguisse para que deixasse de ser.
E a menina?
Estava bem de saúde. Sabe como são os adolescentes, disse a senhora Lens. O que esperar deles exatamente? Silvia podia imaginar que a amiga foi ter uma conversa com a filha, porque achou que ela estava exagerando na maneira de se vestir, com biquínis minúsculos e shorts enfiados e...
-- A senhora fala como se estivesse tratando com uma predadora -- dissera Michele na ocasião.
-- Mas é exatamente o que está parecendo!, minha filha.
-- Fale pela senhora, mamãe!
Silvia lembrou que elas também haviam sido adolescentes.
-- Faz tempo...
-- Nem tanto...
A senhora Lens estava feliz. Para quando devia esperá-la?
Segunda à tarde?
Tudo bem. E, estava ótimo. Assim tenho mais tempo, disse a senhora Lens. Michele estaria na escola e George no trabalho.
-- Será bom rever você. Tenho novidades.
Alguém?
De certa forma.
Como era isso?
Quando ela chegasse, conversaria. Mas você sabe, adiantou Silvia, que eu tenho um computador em casa.
Vadia... Silvia dissera que iria comprar um para trabalhar!
Lidar com homens é um trabalho exaustivo.
A senhora Lens pensava que a amiga os tivesse deixado de lado.
Como dissera, “é um homem apenas de certa forma”.
Nas pausas, a senhora Lens podia ouvir o refrão do mar, sempiterno. Também o ouvia Gerard ao desligar o computador. Desejaria retirar todo o prazer da melodia mas contentou-se em ter a intensidade de percepção possível. Não era capaz da plenitude dos sentimentos que a música pode passar. Perdeu-se no céu parcialmente estrelado, pensando na mulher da praia. Ela caminhava pela areia úmida com jeito de nereida, uma rainha, caminhando na areia como se nas nuvens, a carregar o paraíso consigo na brisa de novembro. O rosto desenhava-se em proporções características de bebês. Os olhos eram grandes e muito abertos. Gerard não tinha certeza mas acreditava-os castanhos. Não era um rosto fora do comum. Irradiava beleza de aura. Transfigurava-a numa deusa despercebida. Não para Gerard, insone que adorava os filmes de Hanna Schygulla e lia tanta Clarice Lispector. O porte vestal admitia um corpo talhado para o amor. Cabelos e pescoço, seios e coxas, pés e mãos, tornozelos e ombros, costas e barriga, como se o amor existisse não em si mesmo, mas naquele corpo. O acesso se dava não por conhecimento mas imaginação.
Viu-se diante dela, nos montes abrigando-se da solidão tempestuosa, na austral curva escura descaindo no vale sombrio.
No corpo que gerava a fantasia de Gerard, a senhora Lens sentiu doer as costas e passou a mão direita em sua lombalgia. Tornava-se crônica.
Falando em homem, como estava o Octavio?
Octavio?
Aquele, da última vez que estiveram juntas, no shopping, havia esquecido?
Ah, fazia tempo que Silvia não o via... – Veja há quanto tempo não nos vemos, Rose!
-- Mas você existe, está aí, eu sei.
Silvia refletiu. Sentia a falta física das pessoas.
A senhora Lens não tinha muitas pessoas das quais devesse sentir falta.
Por que não se separava?
-- Michele o adora.
E Rose, quem adorava? Quem ia se sacrificar por ela?
Michele não pedira pra vir ao mundo.
Droga, Rose, exclamou Silvia. Nem você! Precisavam mesmo conversar com mis calma.
Os filhos crescem e será tarde. A senhor Lens bem o sabia.
A gratidão dos filhos não deveria ser suficiente para encher a vida de seus pais. Rose era jovem, atraente...
Silvia devia estar brincando.
Não estava, ora, trinta e quantos?
Oito!
Silvia estava com quarenta e se sentia desejável.
Tinha tempo para isso.
É o mal das mulheres casadas: não se permitirem ter tempo.
George era bom com a senhora Lens.
Era um canalha dissimulado.
Era bom com ela. O que fazia fora não podia mudar isso.
Mas mudava, disse Silvia. – Quer você admita ou não!
A menina o adorava.
E assim voltaram ao princípio.
A senhora Lens não podia afastar a filha do pai.
Sabe, disse Silvia, o mais curioso era que às vezes invejava a senhora Lens.
Realmente estava brincando.
Pertencia a um contexto normal, as mães são dependentes e as mulheres se sacrificam.
E Silvia, a que contexto pertencia? Dos artistas marginais?
Artistas? Era boa.
Quem larga a medicina para lidar com palavras tem que ser artista. A senhora Lens achava a correspondência de Silvia altamente poética. Sem contar o seu livro.
Silvia não era poeta. Mas, bem, se fosse, seria a sua uma poesia de erotismo.
Nenhum crítico definiria tão bem a obra da senhora Lens.
Quem pode definir uma verdadeira obra de arte?
A senhora Lens nada tinha contra os críticos. Eram tão sem importância...
-- Seus quadros são o que são, e daqui a cem anos terão o mesmo mistério. Mas os críticos do próximo século já reconhecerão seu valor. E os deste, quem se lembrará deles?
-- Não posso me queixar disso. Sou privilegiada. Eles já reconhecem.
-- Não. Elogiam. Porque você está no jogo. George é um homem influente, seu pai era rico, sua mãe famosa, você mesma condescende com o sistema em muita coisa. As portas sempre estiveram abertas para você. Você nunca entrou numa fila de banco, o que sabe do nosso sistema de Saúde ou como funciona a Educação nesse país é pura informação. Nunca esteve desempregada. Aí sim, pode-se dizer que é privilegiadíssima. Agora se imagine sem as costas assim quentes. Eu falo de reconhecimento verdadeiro. Dirão: Como ela era genial! Porque efetivamente a acharão genial, não como parte do jogo da troca de favores.
-- E em que minha vida de hoje se beneficiará?
-- Não se beneficiará. Mas a consciência de um tempo futuro que não viveremos pode ser consoladora.
Michele chegava da escola. – Vou ter de desligar. – disse a senhora Lens. Estaria esperando a amiga.